Aconteceu um fato durante o governo do então presidente da República Jair Bolsonaro (PL), 69 anos, que não ganhou o espaço que merecia na cobertura jornalística. É o seguinte. Assim que assumiu o seu mandato (2019 a 2022), Bolsonaro começou a tentar desmontar a máquina administrativa federal colocando em postos de ministros e de coordenação de várias repartições importantes mais de 6 mil militares (ativa, reserva e reformados) de várias patentes, incluindo um punhado de generais. Os funcionários de carreira montaram núcleos de resistência ao desmanche. Os mais ativos destes núcleos se ergueram nos principais alvos do desmonte: os ministérios do Meio Ambiente, da Saúde e da Defesa.
Vou lembrar um episódio. Em 22 de abril de 2020, em uma reunião de ministros que entrou para a história pelo grande volume de palavrões proferidos pelo presidente da República, o então ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, 49 anos, sugeriu que se aproveitasse o momento em que a atenção total da imprensa estava concentrada na pandemia de Covid-19 para “passar a boiada”. No caso, se tratava da desregulamentação de inúmeras normas de proteção ao ambiente. Há algumas semanas, o ex-presidente disse que se fosse eleito uma segunda vez escolheria apenas pessoas da sua confiança para ocupar os cargos no seu governo. Lembrei-me desta história por conta das indicações a dedo feitas pelo presidente eleito dos Estados Unidos, Donald Trump (republicano), 78 anos, para preencher os postos no seu segundo governo, que se inicia em janeiro. Durante a campanha eleitoral, Trump reclamou que, no seu primeiro mandato (2017 a 2021), foi boicotado pelos funcionários de carreira e dirigentes do seu partido que ocupavam cargos na administração federal. Cito um caso. É fato público que ele teve um desentendimento com o seu vice, Mike Pence, 65 anos, que não concordou com a invasão ao Capitólio (Congresso) por seguidores de Trump, em 6 de janeiro de 2021, para impedir a sessão que ratificaria a vitória de Joe Biden (democrata), 81 anos, na eleição presidencial de novembro do ano anterior. Ao contrário de Bolsonaro, que esta inelegível até 2030 e, portanto, não pode concorrer em 2026, Trump voltou para exercer o seu segundo mandato.
Terá, assim, chance de ver se seu governo sairá mais fiel às suas ideias com a nomeação de pessoas de confiança para postos-chave da administração. O novo presidente já fez várias nomeações com este perfil. Vou citar apenas duas que considero representativas dos pensamentos de Trump: o advogado Robert F. Kennedy Jr., 70 anos, filho do senador Robert F. Kennedy (democrata), conhecido como Bobby, que foi assassinado em 1968. A importância da família Kennedy na história política americana é sintetizada no filme Os Treze Dias que Abalaram o Mundo, sobre a crise dos mísseis de Cuba que por pouco não deflagrou a Terceira Guerra Mundial. Kennedy Jr. vai ocupar o cargo de secretário da Saúde e Serviços Humanos. O segundo é o bilionário Elon Musk, 53 anos, dono do X, antigo Twitter, um notório encrenqueiro internacional e afamado líder da extrema direita. Ele chefiará o recém-criado Departamento de Eficiência do Governo (Doge), com a missão de modernizar os serviços prestados pelo estado. Que tipo de trabalho essa agência irá fazer, ninguém sabe. Será uma surpresa diária quando Musk começar a trabalhar. O bilionário terá um imenso poder nas mãos no governo Trump. O trabalho dele durante a campanha foi fundamental para a derrota da candidata democrata Kamala Harris, 60 anos, nas eleições do início de novembro. Como será o desempenho dos nomeados por Trump? Difícil dizer. É preciso esperar para ver qual será a reação da sociedade americana ao trabalho deles. Na teoria, Trump, de maneira muito resumida, está defendendo a reversão da globalização da economia. É possível? Pretende começar o processo com a taxação das importações, o que pode acelerar a inflação no país. Até agora é tudo teoria. A imprensa americana está devendo uma boa matéria sobre como funciona a máquina administrativa do governo federal. Inclusive, estão escrevendo nas entrelinhas dos textos que a sociedade não vai reagir caso seja cometido algum atropelo dos direitos civis.
Estou com 74 anos, quatro décadas como repórter, e o que tenho visto é que sociedade americana sempre reage quando alguém pisa nos seus calos, como se diz no interior do Rio Grande do Sul. Tudo que tenho lido sobre Trump aponta na direção de que irá forçar a barra. Por dois motivos: o primeiro é que a Constituição não permite que concorra a um terceiro mandato. O segundo é que ele vai querer deixar o seu legado na história americana. Tem quatro anos para fazer isso. Claro, pode ter a sorte de que um de seus indicados tenha uma grande ideia que se transforme em uma marca na política dos Estados Unidos. Mas e se isso não acontecer? Como deixará a sua marca na história? Vai forçar a barra apostando em alguma ideia exótica. Não podemos esquecer que o presidente eleito dos Estados Unidos assumirá o cargo com o imenso poder de ter maioria na Câmara dos Representantes, no Senado e entre os juízes da Corte Suprema. Mas isso não o coloca acima da lei. Não podemos esquecer que durante a campanha Trump afirmou que, se eleito, iria acertar contas com pessoas que ocupam cargos na administração federal que o prejudicaram. Não citou nomes. Mas vem chumbo grosso por aí. Fiquei surpreso com a afirmação do presidente eleito de que irá se vingar. Parece briga de saloon, bar do Velho Oeste.