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Opinião

Jogador compulsivo é questão da saúde pública. Função do governo é regular os jogos online

No período analógico, os jogos ilegais foram o berço do crime organizado, imaginem o que acontecerá na era digital

Publicada em 02/10/2024 às 07:55h

Carlos Wagner


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Marina
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Poucas coisas irritam mais um veterano repórter estradeiro do que ver velhas notícias publicadas nas manchetes dos jornais nos dias atuais como se fossem novidades. No final do mês de setembro teve enorme repercussão na mídia nacional a declaração da deputada e presidente nacional do PT, Gleisi Hoffmann, 59 anos, em relação às “bets”, como são conhecidas as casas de apostas online: “Subestimamos os efeitos nocivos e devastadores. É como se tivéssemos aberto as portas do inferno”. O comentário da experiente deputada foi feito por conta da divulgação, pelo Banco Central, de que em agosto os beneficiários do Bolsa Família gastaram R$ 3 bilhões em apostas online via Pix. E da informação da Confederação Nacional do Comércio (CNC) de que 1,3 milhão de brasileiros ficaram inadimplentes no primeiro semestre de 2024 por causa das apostas online. As portas do inferno, referidas pela deputada Hoffmann, não foram abertas agora. Foram abertas em 30 de abril de 1946, quando o então presidente da República, general Eurico Gaspar Dutra, assinou o Decreto-lei 9.215, proibindo os jogos de azar no Brasil e fechando os cassinos. Os brasileiros não deixaram de apostar com a proibição dos jogos. Continuaram, e a consequência foi que do jogo do bicho nasceu o crime organizado no país.

O fato é o seguinte: os brasileiros apostam até em “campeonato de cuspe a distância”. Estes R$ 3 bilhões apostados pelos beneficiários do Bolsa Família são um grão de areia na praia frente ao montante que é gasto em jogos legalizados e clandestinos diariamente no Brasil. São muitos bilhões. Uma quantia que ninguém sabe a sua totalidade. Na década de 80 e até o início dos anos 90, foquei a minha carreira de repórter em esmiuçar o mundo dos grandes bicheiros do Brasil, em particular do Rio Grande do Sul. Comecei a investigação jornalística destruindo a lenda de que o bicho seria a única atividade honesta no país porque o dono da banca honrava o seu compromisso para com o apostador. Como se dizia na época: “valia o que estava escrito na aposta”. Conversa fiada. Ocorre que as lotéricas que sorteavam os números pertenciam aos bicheiros. Que faziam os sorteios sem fiscalização do governo ou de qualquer auditor independente. Mais ainda: eles tinham o controle interno dos números mais apostados para se prevenir de surpresas. Na ocasião, publiquei uma reportagem mostrando que os bicheiros construíram a imagem de pessoas honestas, que sempre cumpriam com suas obrigações para com o apostador, graças à ignorância da imprensa, que não sabia o que se passava entre as quatro paredes das casas de apostas. Também fiz uma reportagem quando os bicheiros entraram no negócio das máquinas de apostas e dos bingos. Na ocasião, em uma noite, em Porto Alegre, encontrei uma equipe de psicólogos e outros profissionais de saúde mental circulando pelas casas de apostas. Eram ligados à Organização Mundial da Saúde (OMS), das Nações Unidas, e tivemos uma longa conversa que varou a madrugada e só acabou quando o sol nasceu. Eles tratavam dos jogadores compulsivos. Fui a uma reunião deles com os Jogadores Anônimos, um tipo de irmandade em que pessoas viciadas em apostas compartilham suas experiências para tentar se manter longe do jogo. Entrevistei uma jovem senhora de 25 anos que deixou o marido e um filho e acabou se prostituindo para pagar as dívidas de jogo. Um funcionário público da Receita Federal que vendeu casa, carro e tudo mais para continuar apostando. Um delegado de polícia que acabou aposentado por estar com distúrbios mentais. E por aí afora.

Estive em Brasília, no Rio de Janeiro e outros cantos do país, incluindo as fronteiras com o Uruguai e o Paraguai, fazendo reportagens sobre cassinos, casas de jogos de baralho ilegais e outros tipos de jogatina. Em Santana do Livramento, cidade gaúcha separada por uma avenida da uruguaia Rivera, encontrei a então juíza carioca Denise Frossard, que em 6 de outubro completa 74 anos. Em 1993, ela tornou-se notícia nos jornais ao redor do mundo ao colocar na cadeia os 14 maiores banqueiros do jogo do bicho do Rio de Janeiro. Estava de férias em Livramento e tivemos uma longa e produtiva conversa, da qual extraí informações para muitas matérias. A conclusão que se chegou no final dos anos 80 era de que a única maneira que o governo federal tinha para impedir que os jogos ilegais se alastrassem no país e acabassem se misturando com outros tipos de crimes, como lavagem de dinheiro e financiamento do tráfico de drogas e armas, era legalizá-los e garantir que não fossem fraudados. E que os viciados recebessem tratamento médico. Na ocasião, tive uma longa conversa com um psiquiatra que, por conta da OMS, tinha viajado mundo afora se especializando na questão dos viciados em jogo. Sempre começava uma entrevista afirmando o seguinte: “O vício em jogos é um problema de saúde pública”. O governo federal, a Câmara dos Deputados e o Senado podem colocar vários mecanismos para impedir que o jogador compulsivo aposte. Mas ele vai conseguir uma maneira de driblar a lei e apostar.

Arrematando a nossa conversa. As apostas online foram legalizadas em 2018 pelo então presidente da República Michel Temer (MDB), 84 anos, que foi sucedido em 2019 por Jair Bolsonaro (PL), 69 anos. Durante o seu mandato (2019-2022), Bolsonaro, seja lá qual tenha sido o motivo, não regularizou as apostas online. O seu sucessor, Luiz Inácio Lula da Silva (PT), 78 anos, em 2023 editou uma medida provisória para a regulamentação das apostas online. Lula e seu ministro da Fazenda, Fernando Haddad, 61 anos, já manifestaram interesse político em regulamentar as apostas. Como disse, a imprensa vem tratando o assunto de maneira superficial. Vejam bem. Se durante o período analógico os jogos ilegais foram o berço de importantes segmentos do crime organizado no Brasil, imaginem o que acontecerá agora, na era digital. Aliás, já está começando a surgir uma grande lavanderia de dinheiro sujo.




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