Oex-presidente Jair Bolsonaro (PL) e a ex-primeira-dama Michelle acordaram na manhã de quarta-feira (03/04) com uma equipe da Polícia Federal (PF) cumprindo mandados de busca e apreensão na residência deles, em um condomínio em Brasília (DF). Eram agentes da Operação Venire, que investiga a fraude nas carteiras de vacinação da Covid-19 do ex-presidente, de seus familiares e de pessoas que faziam parte da comitiva que viajou para os Estados Unidos em 2021, para participar da abertura da Assembleia Geral das Nações Unidas (ONU). Foram cumpridos 16 mandados de busca e apreensão e seis de prisão preventiva. Um dos presos é o tenente-coronel Mauro Cid, que era ajudante de ordens do ex-presidente. A nossa conversa não é sobre este episódio, a respeito do qual há abundante material disponível na internet. Uso essa história para lembrar que o ex-presidente não cometeu seus crimes sozinho. Não é por outro motivo que, usando uma tática de comunicação muito simples e eficiente, os estrategistas políticos do movimento bolsonarista estão conseguindo ocupar os espaços nobres dos grandes jornais e noticiários das rádios e TVs vendendo a imagem do governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas, como uma espécie de Jair Bolsonaro sem defeitos. Um técnico com as mãos limpas depois de ter sido ministro da Infraestrutura do governo Bolsonaro. O pacote é esse. Compra quem quiser.
Mas a verdade é outra. Todos os ministros do ex-presidente sujaram as mãos participando de um governo que deixou as suas digitais em várias tragédias nacionais, vou citar três. A morte de mais de 700 mil brasileiros pela Covid, um caso detalhado nas 1,3 mil páginas do relatório final da Comissão Parlamentar de Inquérito do Senado da Covid-19 (CPI da Covid). O incentivo à invasão dos garimpeiros às terras indígenas, que tem como símbolo a imagem de centenas de yanomamis transformados em pele e osso pela fome. E os atos terroristas de 8 de janeiro, quando bolsonaristas radicalizados invadiram e destruíram tudo que encontraram pela frente nos prédios do Congresso, do Palácio do Planalto e do Supremo Tribunal Federal (STF), na Praça dos Três Poderes, em Brasília (DF). Bolsonaro não fez toda essa lambança sozinho. Os seus ministros estavam lá e também são responsáveis, incluindo Tarcísio. Até agora, o único ex-ministro preso é o delegado da Polícia Federal Anderson Torres, que chefiou a pasta da Justiça e Segurança Pública e cumpre prisão preventiva, suspeito de ter facilitado a ação dos bolsonaristas radicalizados em 8 de janeiro. É do jogo da disputa política os líderes do movimento bolsonarista tentarem sobreviver. Eles não estão forçando nenhum jornalista a comprar a versão deles. Na imprensa tradicional, os estrategistas do movimento bolsonarista estão seguindo a mesma trilha aberta pelos seguidores do ex-presidente dos Estados Unidos Donald Trump (republicano), que marcou o seu governo por ter incentivado os seus seguidores a invadir o Capitólio, o congresso americano, em 6 de janeiro de 2021, para evitar a posse do democrata Joe Biden, que venceu nas eleições presidenciais. Os estrategistas de Trump conseguiram preservar a imagem do ex-presidente entre os americanos, a ponto dele ser um forte candidato à indicação dos republicanos para enfrentar Biden nas próximas eleições presidenciais, em novembro de 2024.
Qual é a diferença da imprensa americana para a brasileira no caso dos ex-presidentes? A grande diferença é que imprensa dos Estados Unidos deslocou as matérias sobre Trump para o pé da página dos jornais. E a brasileira continua colocando Bolsonaro nas manchetes. Esse comportamento da imprensa nacional dá a ideia de que o assunto mais importante do país é a disputa política entre o ex e o atual presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva (PT). Não é. São imensos os problemas nacionais que afligem o dia a dia do nosso leitor, como desemprego, fome, devastação da Floresta Amazônica e o fortalecimento das organizações criminosas que estão tentando transformar o país em um corredor de drogas para a Europa e os Estados Unidos. O que descrevi é o cenário atual da imprensa nacional. Não é opinião. É o que temos escrito. Basta olhar as notícias. Diferentemente de outras épocas, a atual vivida pelos brasileiros requer do repórter uma leitura mais apurada da realidade. Somos nós repórteres os únicos que podem mostrar aos senadores, aos deputados federais e ao governo o que acontece dentro das casas dos brasileiros. São os jornalistas que dão rosto aos números das estatísticas sobre a fome. Há um exercício que eu faço para saber o que rola entre as pessoas. Converso muito com quem encontro no meu dia a dia. Sai da redação em 2014, e hoje posso me dar ao luxo de perambular pelas organizações populares encravadas no meio das favelas da Região Metropolitana de Porto Alegre. E ter longas papos pelo WhatsApp e outros aplicativos com lideranças populares em favelas de outros estados, como São Paulo e Rio de Janeiro. O que vou dizer não é cientifico. Mas existe uma grande reclamação sobre a cegueira da imprensa para os problemas que afligem o dia a dia da população de baixa renda. Tenho feito relatos dessas conversas com colegas e estudantes de jornalismo pelo interior do Brasil. Sou repórter desde 1979 e sempre trabalhei com conflitos agrários, crime organizado, migrações e, claro, as matérias que caíam no colo quando fazia plantões na redação. Sempre existiu um abismo entre a realidade lá fora e a redação do jornal. Nos dias atuais, o abismo está crescendo. Nunca os engravatados tiveram tanta facilidade para entrar nas redações como atualmente. E os trabalhadores de baixa renda, que antes conseguiam chegar à portaria do jornal ou ligar e ser atendido, hoje nem isso conseguem. Vou contar uma historinha. No mês passado fui convidado por amigo de longa data para conversar com uns jovens sobre jornalismo. A conversa seguia aquele roteiro de sempre. Até que um deles fez uma pergunta que considerei importante. Ele perguntou o motivo pelo qual a imprensa só entrevista pobre que conseguiu ficar rico. E acrescentou: “Por que não falam com quem trabalhou a vida toda e mal consegue dar o pão de cada dia para os filhos?” Poderia ter dado uma resposta clássica. Resolvi dizer que não sabia e que iria me informar sobre os motivos.
Alguém sabe a resposta para essa pergunta? Para arrematar a nossa conversa. Vou contar uma historinha. Nos anos 80 fiz uma reportagem sobre o cotidiano de uma favela. Mudei-me para a Vila Cruzeiro, um conglomerado de 27 favelas onde viviam, na época, 250 mil pessoas, encravada na Zona Sul de Porto Alegre. Durante a matéria me chamou atenção o fato de que as crianças que corriam soltas pelas vielas de chão batido inundadas pela água suja dos esgotos pediam dinheiro para comprar balas (doces). Perguntei a um frei franciscano que vivia em um casebre na favela porque compravam tantas balas. Ele me respondeu que era porque o açúcar da bala ajudava a aliviar a fome. Na semana passada andei pelos supermercados que ficam na favela e conversei com os gerentes. Eles disseram que o consumo de mercadorias baratas, como balas e produtos que imitam sabores de bacon, queijo e outros, conhecidos como salgadinhos, sempre cresce durante as crises. Não está sendo diferente na atual.