É coincidência? Em menos de um mês foram descobertos pelo Ministério Público do Trabalho (MPT) dois contingentes de trabalhadores submetidos a trabalho análogo à escravidão no Rio Grande do Sul. O último foi agora, sexta-feira (10/03), quando a Polícia Federal (PF), o MPT e a Brigada Militar (BM) encontraram 82 trabalhadores submetidos a condições análogos à escravidão em duas fazendas envolvidas com plantação de sementes para arroz, no interior de Uruguaiana, fronteira gaúcha com a Argentina. No primeiro caso, em 28 de fevereiro, a Polícia Rodoviária Federal (PRF), a BM e o MPT encontraram 204 (192 baianos) safristas da uva submetidos às mesmas condições em Bento Gonçalves, cidade vizinha a Caxias do Sul, na Serra gaúcha. Esse episódio virou notícia nacional por conta das declarações racistas contra os baianos proferidas pelo vereador bolsonarista Sandro Fantinel (sem partido), de Caxias do Sul. O parlamentar foi indiciado por racismo em um inquérito da Polícia Civil e responde a um processo de impeachment na Câmara de Caxias. Sou repórter há 40 anos e não lembro de ter acontecido dois episódios desse calibre em menos um mês no Rio Grande do Sul. É sobre isso que vamos conversar.
Começo respondendo à pergunta que fiz no começo do texto. Não são coincidências esses dois acontecimentos. Como se dizia nas antigas redações das barulhentas máquinas de escrever: eles nasceram no mesmo berço. Em 3 de dezembro de 2018, o então ministro extraordinário da transição de governo de Michel Temer (MDB) para o do presidente eleito Jair Bolsonaro (PL), Onyx Lorenzoni, anunciava a extinção do Ministério do Trabalho, fundado em 1930 por Getúlio Vargas, e sua incorporação ao superministério da Economia, comandado pelo economista Paulo Guedes, apelidado de Posto Ipiranga por Bolsonaro. No total, foram extintos 12 ministérios e restaram 22. A extinção do Ministério do Trabalho quebrou as pernas da Justiça do Trabalho porque diminui o seu poder de fiscalização. Na época, havia um comentário forte nas redações dos jornais de que a Justiça do Trabalho estava com os seus dias contados. Eu lembro de ter ouvido durante uma entrevista um comentário do então presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia (2016 a 2021), sobre a Justiça do Trabalho. Ele disse, nas entrelinhas, que era um absurdo a existência da Justiça. Desmontar o Ministério do Trabalho foi uma sacanagem. E colocar o que restou da pasta sob a guarda do Ministério da Economia foi o mesmo que colocar a raposa para cuidar do galinheiro. Por quê? Conheço esse país de ponta a ponta e de lado a lado. O trabalho análogo à escravidão é uma realidade nos confins dos sertões brasileiros. Fiz matéria nas carvoarias do interior do Pará, nas plantações de cana-de-açúcar (Nordeste) e nos garimpos (Rondônia). Lembro-me que em 28 de janeiro de 2004, na cidade de Unaí (MG), três auditores fiscais, Eratóstens de Almeida Gonçalves, João Batista Soares Lage e Nelson José da Silva e o motorista do Ministério do Trabalho Ailton Pereira de Oliveira foram tocaiados e mortos quando investigavam trabalho análogo à escravidão em fazendas da região.
Em julho de 2021, faltando um ano e alguns meses para terminar o seu governo, Bolsonaro, para acomodar seus novos aliados políticos, recriou o Ministério do Trabalho e colocou Lorenzoni como ministro. O resumo dessa história foi a desarticulação da fiscalização do ministério. Essa desarticulação beneficiou pessoas como o empresário baiano, radicado em Bento Gonçalves, Pedro Augusto de Santana, 45 anos, que prosperou nos quatro anos no governo Bolsonaro trazendo safristas para a colheita da uva – há matéria na internet. Lideranças dos plantadores de arroz de Uruguaiana no sindicato rural e na associação dos arrozeiros e do Centro de Indústria, Comércio e Serviços (CIC) de Bento Gonçalves sabem cada vírgula dos fatos que descrevi. Mas preferem enfiar a cabeça na terra, como avestruzes, e pregar a teoria da conspiração sobre a questão do trabalho análogo à escravidão. Essas lideranças têm o direito de defender as ideias políticas do ex-presidente Bolsonaro. Um direito assegurado pela Constituição. Mas não têm o direito de defender os criminosos envolvidos com o trabalho análogo à escravidão. Muito menos de atacar a imprensa com fake news. Vou citar dois episódios que se tornaram notícia mundial referentes à desarticulação da fiscalização propositadamente feita pelo ex-presidente e o seu círculo íntimo de líderes. A desmontagem de órgão ambientais, como o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) e Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), que resultou na invasão de mais de 20 mil garimpeiros na área dos índios yanomami, uma extensão de 9,2 milhões de hectares em Roraima, na fronteira com a Venezuela. A invasão instalou a fome na reserva, resultando em homens, mulheres e crianças reduzidas a pele e ossos, como mostraram as imagens que foram notícia ao redor do mundo. E também no envolvimento de bolsonaristas radicalizados com atos de terrorismo, em 8 de janeiro de 2023, em Brasília (DF), quando destruíram tudo que encontraram pela frente no Congresso, no Palácio do Planalto e no Supremo Tribunal Federal (STF) – há vídeos e notícias disponíveis na internet.
Uma conversa que tenho com repórteres do interior do Brasil, especialmente os jovens das emissoras de rádio, é que uma coisa é um governo deixar como legado uma série de problemas sociais, econômicos e a destruição de controles de fiscalização decorrentes da suaincompetência administrativa. Faz parte do jogo. Outra coisa é deixar uma herança de estragos feitos propositadamente com a finalidade de praticar crimes. Como foi o caso do ex-presidente Bolsonaro. Não é por outro motivo que estão acontecendo investigações da PF e há processos correndo em vários tribunais federais. Olha, disputa política é uma coisa. Caso de polícia é outra. Não dá para misturar. A máquina de fake news a serviço do ex-presidente vem tentando fazer essa mistura para confundir a população. Daí o cuidado que o repórter envolvido com o noticiário do dia a dia precisa ter. Fica o alerta.