Julguei que fosse uma pessoa mais experiente no pesado jogo pela sobrevivência política o delegado da Polícia Federal (PF) Anderson Torres, 47 anos. Ex-ministro da Justiça do governo do então presidente da República Jair Bolsonaro (PL), ele foi também secretário da Segurança Pública do Distrito Federal, nomeado pelo governador reeleito Ibaneis Rocha (MDB), atualmente afastado do cargo por 90 dias pelo ministro Alexandre de Moraes, do Superior Tribunal Federal (STF). Torres é acusado de ter não ter impedido os atos terroristas dos bolsonaristas radicalizados que na tarde do segundo domingo de janeiro (08/01) depredaram as instalações do Congresso Nacional, do Palácio do Planalto e do STF, localizados na Praça dos Três Poderes, em Brasília (DF). O ex-ministro não é só um marinheiro de primeira viagem no pesado jogo da sobrevivência política como também é um desaforado, que ofendeu a inteligência dos brasileiros no seu depoimento durante a audiência de custódia na cadeia onde cumpre a prisão preventiva decretada por Moraes, que o acusa de ter feito vistas grossas aos atos terroristas em Brasília. O depoimento do ex-ministro foi um desaforo à inteligência. Li o texto. É um amontoado de lamúrias e de argumentos esfarrapados. Há um trecho no depoimento que resume toda a história. Ele afirma: “Quero dizer que sou um profissional da segurança pública há 23 anos (…) sempre lutei pelo equilíbrio”. O equilíbrio a que ele se refere é a sua atuação nos assuntos políticos que envolvem disputas entre o Executivo, o Legislativo e o STF.
Falando um português simples e direto. Então quer dizer que Torres não sabia que, desde que se sentou na cadeira de presidente da República, em 2019, Bolsonaro e o seu círculo íntimo de líderes, entre eles os chamados Generais do Bolsonaro, como foi apelido pela imprensa um grupo de militares (ativa, reserva e reformados), pretendiam dar um golpe de estado? Tentaram várias vezes e falharam, como documentou a imprensa em textos, fotos e vídeos. E que também não sabia que o então presidente tinha como esporte atacar a credibilidade da Justiça Eleitoral, em especial as urnas eletrônicas. E que caso fosse derrotado na sua tentativa de reeleição, o vencedor não assumiria a Presidência. Inclusive, por diversas vezes, Bolsonaro lembrou que, em caso de derrota, poderia se repetir no Brasil o que aconteceu nos Estados Unidos em 6 de janeiro de 2021, quando seguidores do então presidente Donald Trump (republicano), que perdeu a reeleição para Joe Biden (democrata), invadiram o Capitólio (Congresso) e quebraram tudo que encontraram pela frente. Aqui aconteceu algo semelhante. Bolsonaro perdeu a reeleição para Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e os seus seguidores invadiram o Congresso, o Palácio do Planalto e o STF, destruindo o que encontraram pela frente. Nos quatro anos de governo do ex-presidente nós jornalistas aprendemos que ele nunca aceitou um ministro que não concordasse em 100% com as suas ideias. Por que o ex-ministro da Justiça seria uma exceção? Torres é um qualificado delegado da PF, portanto um observador atento de tudo que se passa ao seu redor. Como não sabia o que acontecia?
Assim que terminei a leitura do texto da audiência de custódia me veio à mente a lembrança de um documentário que assisti sobre um episódio envolvendo os campos de concentração na Alemanha nazista e o comandante das tropas aliadas, o general americano Dwight Eisenhower. O general, que depois seria presidente dos Estados Unidos, ordenou as populações das cidades próximas aos campos fossem visitá-los para ver as pilhas de cadáveres de pessoas (judeus, ciganos e outras minorias) executadas pelos nazistas. O objetivo da visita era evitar que dissessem que não sabiam o que acontecia nos campos. Também lembrei de um trecho de outro documentário sobre os nazistas julgados no Tribunal de Nuremberg. Além de punirem os criminosos de guerra, os oficiais aliados queriam entender o motivo pelo qual um país inteiro se deixou seduzir pelo discurso do Adolf Hitler, uma sombria personagem da história mundial – há matéria na internet. Outra situação que os ex-ministros de Bolsonaro, especialmente os da Saúde, não têm como dizer que não sabiam vem sendo notícia nos últimos dias nos jornais, sites e TVs no Brasil e no exterior, com fartura de imagens e texto. Trata-se da tragédia sanitária da tribo yanomami, que ocupa uma extensa reserva de 30 mil hectares em Roraima, na fronteira com a Venezuela. É uma tragédia anunciada, como mostra uma matéria publicada no site Sumaúma (https://sumauma.com/nao-estamos-conseguindo-contar-os-corpos/), assinada pelas repórteres Ana Maria Machado, Talita Bedinelli e Eliane Brum. São mais de 570 crianças mortas por doenças que têm tratamento. Parte dessa tragédia já tinha sido anunciada pela Comissão Parlamentar de Inquérito do Senado da Covid-19 (CPI da Covid). O relatório final da CPI da Covid, um documento de 1,3 mil páginas, coloca as digitais do governo Bolsonaro na morte de 700 mil brasileiros pela Covid.
Estive fazendo reportagem na reserva yanomami na década de 90, quando um grupo de indígenas foi massacrado por garimpeiros. A situação hoje é centenas de vezes pior. Nos dias atuais, o garimpo é operado pelo crime organizado e se espalhou pela reservas. Entre os financiadores estão organizações criminosas como o Primeiro Comando da Capital (PCC), de São Paulo. Para arrematar a nossa conversa. São marcas registradas do governo Bolsonaro: atos terroristas em Brasília, a tragédia dos índios yanomami e os 700 mil brasileiros mortos pela Covid. Ele e o seu círculo íntimo de líderes não fizeram segredo dessas situações. Muito pelo contrário. Fizeram tudo às claras. Pregaram o negacionismo à Covid, desmontaram a estrutura de fiscalização dos órgãos de meio ambiente para facilitar a vida dos garimpeiros e madeireiros ilegais e abandonaram à própria sorte os yanomamis. Nenhum dos ministros que trabalharam com Bolsonaro pode afirmar que desconhecia essa situação. Ela estava nas páginas dos jornais semanalmente. Qual será o destino de Bolsonaro? Toda essa situação foi criada por uma decisão de governo. As investigações policiais que vão acontecer lançarão luzes em lugares ainda obscuros na questão dos garimpos, como o caminho do ouro retirado ilegalmente da região. Tem muito dinheiro envolvido nessa história mal contada. Tudo o que escrevi não é opinião. São fatos que noticiamos nos jornais.