Quando Luiz Inácio Lula da Silva (PT) desembarcar na capital chinesa nos próximos dias, ele pode tentar repetir uma velha fórmula, mas seu resultando é incerto. Com um histórico de neutralidade nas relações internacionais e de negociação até com inimigos, o Brasil volta à arena internacional, após o isolamento do governo de Jair Bolsonaro (PL), com uma tarefa difícil: se equilibrar diante do crescimento da tensão entre China e Estados Unidos.
As duas maiores economias do mundo trocam sanções e acusações de espionagem em um ritmo acelerado. O não alinhamento de Pequim com a posição dos Estados Unidos e da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) diante da guerra da Ucrânia aprofunda ainda mais as diferenças.
Lula estará na China entre os dias 26 a 31 de março e será acompanhado por uma comitiva que conta com o presidentes da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL), do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), e ministros de cinco pastas: Agricultura, Ciência e Tecnologia, Fazenda, Saúde e Relações Exteriores. Também está prevista a viagem de uma comitiva de mais de 240 empresários.
O presidente do Brasil visitará a capital Pequim e Xangai. Segundo fontes ouvidas pelo Brasil de Fato e que estão diretamente envolvidas na recepção da comitiva brasileira na China, Dilma Rousseff (PT) deve ter tomar posse como presidente do Novo Banco de Desenvolvimento (NBD), mais conhecido como Banco dos Brics, no dia 30. Em território chinês, o governo brasileiro espera assinar cerca de 20 acordos nas áreas de agricultura, ciência e tecnologia, meio ambiente, economia, comércio e investimentos.
A primeira viagem a um país não ocidental do novo mandato Lula acontece após o presidente visitar Argentina, Uruguai e o próprio Estados Unidos, onde teve apenas um dia de agenda. A interação se desdobrou em uma promessa de investimento dos EUA para o Fundo Amazônia - sem transferência de recursos efetivos até o momento - e a recente visita da Representante de Comércio dos EUA, Katherine Tai, a Brasília.
Para a Ana Tereza Marra, professora da Universidade Federal do ABC (UFABC) e Coordenadora do Grupo de China do Observatório de Política Externa Brasileira (OPEB), os resultados na relação bilateral com os EUA ainda são tímidos, mas há uma "aproximação política" em curso com a Casa Branca. Já com a China, a visita promete porque os chineses podem oferecer mais, avalia.
"Os EUA querem investir no clima, mas depende do Congresso aprovar os recursos e aí pode ser que invista ou que não invista. Eles fizeram aquela Lei dos Chips, que é essa coisa deles tentarem mudar as cadeias de fornecimento global de semicondutores e trazer a produção para os EUA e países aliados dos EUA, eles têm dinheiro para investir em outros países, mas ao mesmo tempo que existe isso, eles acenam para o Brasil, mesmo que não tenham nada concreto", diz a professora da UFABC ao Brasil de Fato. "A China, pela própria natureza e de suas relações com o Brasil nos últimos anos, consegue tornar as coisas concretas de uma forma mais rápida."
Sobre a capacidade do Itamaraty e do Brasil de conseguir manter sua posição histórica de neutralidade e negociação em meio a um cenário global cada vez mais intenso e fragmentado, Marra acredita que ainda não é possível saber os limites e possibilidades dessa postura.
Mas a pesquisadora ressalta que a Casa Branca hoje coloca mais energia na relação com a Europa e o presidente Joe Biden não exerce o mesmo nível de pressão que seu antecessor, Donald Trump - que fez uma campanha ativa para barrar a expansão de empresas chinesas no mercado de 5G da América Latina. Enquanto isso, crê a pesquisadora da UFABC, os EUA falham em fazer ofertas, ou ameaças, para arregimentar os países latino-americanos em sua aliança anti-China.
"O que a China busca é pragmatismo mais do que alinhamento, quem busca o alinhamento do Brasil são os EUA, a China quer que o Brasil seja pragmático e abrace as oportunidades. E os EUA exigem mais uma tomada de posição, mas mesmo essa exigência hoje não é uma exigência a todo custo", diz a professora da UFABC.
Prioridades da viagem
A viagem de Lula pode resultar em acordos que impulsionem a reindustrialização da economia brasileira, um dos objetivos declarados pelo governo. Nesse sentido, duas iniciativas podem ganhar destaque: a compra por uma empresa chinesa de uma fábrica de veículos abandonada pela Ford em Camaçari, na Bahia, e possíveis parcerias na área de semicondutores.
A expectativa é que a companhia chinesa BYD, líder na venda de carros híbridos e elétricos no mundo (1,85 milhão de unidades em 2022), compre a fábrica abandonada pela empresa dos EUA em 2021. A China detêm o maior mercado deste produto do mundo, além de dominar a cadeia dos minerais críticos essenciais para a transição energética.
O governador da Bahia, Jerônimo Gonçalves (PT), acompanhará Lula na China e afirmou ao jornal Correio que as conversas com a BYD estão "nas últimas tratativas" e está "quase fechando".
Já no setor dos semicondutores, o Brasil também busca espaço. Os chips que movem celulares, computadores e videogames são cada vez mais essenciais para a economia global. Eles agora também são necessários para carros, eletrodomésticos e outros itens. A escassez desse insumo vital para a indústria tecnológica fechou fábricas mundo afora e seu uso militar faz com que China, Estados Unidos e União Europeia invistam centenas de bilhões de dólares no setor.
As cifras desse segmento da indústria são superlativas. Os EUA prometem mais de US$ 100 bilhões em subsídios e isenção fiscal para fomentar a produção de semicondutores por meio de sua Lei dos Chips - aprovado no ano passado, o projeto determina o investimento de bilhões de dólares no setor, com cláusulas que limitam o comércio com a China. Já a União Europeia fala em mobilizar US$ 48 bilhões para aumentar sua participação nesse mercado.
Frente a esse cenário, os chineses buscam garantir sua autonomia tecnológica. Em entrevista ao jornal britânico Financial Times, uma fonte com acesso ao governo chinês disse que Pequim irá subsidiar o setor "sem qualquer restrição orçamentária" para "superar as restrições dos EUA".
Fazer acordos com Pequim e Washington pode não ser um caminho, já que os Estados Unidos atuam para isolar a China. Seu programa de investimento em semicondutores impede que empresas que recebam recursos estatais expandam as suas atividades na China por 10 anos, além da pressão da Casa Branca ter feito com que uma empresa vital do setor localizada na Holanda parasse de exportar seus produtos para os chineses.
Embora o Brasil esteja longe de conseguir mobilizar os recursos necessários para competir pela liderança do setor de semicondutores, o país pode ter um ativo: o Centro Nacional de Tecnologia Eletrônica Avançada (Ceitec). De acordo com representante da companhia estatal brasileira, a Ceitec é "a única empresa da América Latina que possui infraestrutura funcional de salas limpas e linha de equipamentos industriais para produção de semicondutores".
A ministra da Ciência, Tecnologia e Inovações, Luciana Santos, acompanha Lula na China e já afirmou em entrevistas que recuperar a Ceitec, que Bolsonaro tentou privatizar e fechar, é uma das prioridades, o que sinaliza para possíveis acordos e tratativas.
Como não ser "zona de sacrifício"
Em 2022, o Brasil vendeu US$ 31,78 bilhões de soja para a China, além de outras dezenas de bilhões de dólares em ferro e petróleo. Já os chineses conseguem exportar para o Brasil produtos com maior refino tecnológico, como painéis solares e equipamentos de telefonia.
A cadeia produtiva da soja no Brasil é ligada ao latifúndio, aos transgênicos e ao uso intensivo de agrotóxicos, de modo que um aumento do apetite chinês pelo produto pode significar o crescimento de violações ambientais e de direitos humanos no Brasil.
Para evitar que o país se torne uma espécie de "zona de sacrifício" do crescimento econômico chinês e do enriquecimento de latifundiários brasileiros, a pesquisadora Ana Tereza Marra defende que algumas políticas públicas podem ser adotadas.
"Uma forma de tentar mais qualidade para as relações econômicas é atrair investimentos chineses para o Brasil que sejam direcionados para setores de interesse estratégico do governo. O governo tem que ter claro que setores são esses e que projetos quer propor para a China financiar", diz a professora ao Brasil de Fato. "Essa é a meta do governo Lula, são investimentos que vão auxiliar a reindustrialização do país".
A pesquisadora da UFABC ressalta que o governo da China tomou a decisão estratégica de não plantar soja por conta dos efeitos ambientais do cultivo, como o alto consumo de água. O plano das autoridades foi, então, importar o produto — e o Brasil é o principal fornecedor da soja consumida na China.
Para atenuar uma pauta comercial que não deve ser alterada profundamente no curto prazo, a professora da UFABC defende que o Brasil trate com a China de investimentos em projetos ambientais e de conservação, um "mecanismo compensatório".
"Para isso, a gente tem que ter claro quais são esses setores estratégicos e temos que ter projetos para propor nesses setores. Esse é um aspecto importante, é óbvio que a China não vai chegar aqui com os projetos prontos e vai fazer o que é a decisão do Brasil fazer", avalia.