O conflito militar entre Rússia e Ucrânia completa seis meses nesta quarta-feira (24) e a península da Crimeia, anexada pela Rússia em 2014, entra pela primeira vez na rota da guerra entre os dois países. A série de explosões em unidades militares russas na Crimeia no mês de agosto abre uma nova fase do confronto e pode impactar na estratégia de Moscou.
Enquanto Moscou fala em "sabotagem" e Kiev não assume a autoria pelas explosões, cresce a especulação sobre os próximos passos do presidente russo, Vladimir Putin, em sua operação militar na Ucrânia.
Todas as expectativas de que a operação especial militar na Ucrânia fosse terminar rapidamente através de uma blietzkrieg foram frustradas. O conflito militar entre os dois países completa seis meses sem nenhum sinal de cessar-fogo ou sequer a possibilidade de retomada das negociações no horizonte.
A primeira mudança significativa da estratégia russa aconteceu em meados de abril, quando o Kremlin recuou dos arredores de Kiev e passou a concentrar os combates em Donbass, no leste da Ucrânia, anunciando a "segunda fase" da operação. Na ocasião, houve a expectativa de que, ao focar os esforços na região de Donbass, Moscou poderia assumir o controle de alguns territórios e buscar um caminho para negociar o fim da guerra a partir daí.
O cientista político Abbas Galyamov diz ao Brasil de Fato que no começo da operação "se falava de objetivos mais abstratos, como a desnazificação e desmilitarização". Estes objetivos passaram a ser mais concretos com o anúncio da segunda fase, sendo mais localizados.
Posteriormente, no entanto, o discurso das autoridades russas mudou e passou a se falar mais abertamente da possibilidade da Rússia abrir outras frentes, anunciando em meados de julho que os "objetivos geográficos" da Rússia na Ucrânia teriam mudado.
Após declarar a tomada da região de Lugansk, em 3 de julho, a Rússia determinou uma pausa operacional para suas tropas em Donbass, deixando claro que as perspectivas de avanço sobre novos territórios na Ucrânia de fato estão nos planos da Rússia.
O ministro das Relações Exteriores da Rússia, Serguei Lavrov, disse em 20 de julho que objetivos de Moscou não se restringem apenas às chamadas Repúblicas Populares de Donetsk e Lugansk, mas também a vários outros territórios.
Em paralelo a isso, os EUA aumentaram a ajuda militar à Ucrânia, fornecendo novos lança-foguetes múltiplos HIMARS, o que também gerou uma nova inflexão no campo de batalha, alimentando narrativa de que a Ucrânia poderia lançar uma contra-ofensiva nos territórios controlados pela Rússia.
Nesse intermédio até o momento atual, a linha de frente da guerra não sofreu grandes alterações e a disputa por territórios permaneceu relativamente estática, com Moscou tendo êxito no controle de regiões como Lugansk, Kherson e Severodonetsk, e a Ucrânia contra-atacando pontualmente e fortalecendo a resistência em Kharkov.
Para o analista sênior do International Crisis Group para a Rússia, Oleg Ignatov, a ofensiva russa em agosto ficou "praticamente parada", o que pode representar tanto uma um esgotamento das suas possibilidades na atual fase, quanto uma "pausa operacional consciente", com uma preparação para uma nova ofensiva.
"Parece que a Rússia prepara uma nova ofensiva. Existem muitos dados de que eles estão formando novos batalhões de grupos táticos, que eles estão juntando mais tropas e reservistas. Há também muitas informações que as dificuldades são enormes, sobretudo em relação à capacidade de completar as tropas, ainda há um grande déficit de infantaria", observa.
Crimeia pode ser nova frente da guerra?
No começo de agosto, uma série de fortes explosões atingiram um aeródromo russo perto da região de Novofedorovka, na Crimeia. Segundo o Ministério da Defesa russo, o incidente foi causado por uma detonação de munições de aviação. Foi confirmada a morte de uma pessoa, com outras sete feridas por estilhaços, incluindo duas crianças.
No primeiro momento, Moscou afirmou que o motivo das explosões foi a detonação de munição em um depósito militar "temporário". Kiev, por sua vez, negou ser responsável por ataques na região.
Já na segunda ocorrência de explosões na península em uma mesma semana, em 16 de agosto, as autoridades russas mudaram o discurso. O Ministério da Defesa russo anunciou que as explosões foram provocadas por uma "sabotagem".
Oleg Ignatov observa que a península da Crimeia tem uma importância estratégica muito grande para a Rússia porque é justamente através da região que ela busca realizar a tomada do sul da Ucrânia. Assim, é a partir da península anexada por Moscou em 2014 que as tropas russas atacam o sul da Ucrânia. Ao mesmo tempo, a Crimeia representa uma base para reabastecimento de recursos dos agrupamentos russos no sul de Kherson e Zaporozhye.
"A Ucrânia está interessada em escalar o conflito sobre a Crimeia, e a Crimeia tem um significado simbólico muito importante para a Rússia. E mostrar que a Crimeia saiu da zona de conforto, tornando-se, de fato, um campo de batalha ou uma linha do front, algo que ainda não havia acontecido, mesmo em 2014, quando, se lembrarmos, tudo ocorreu sem vítimas", aponta.
Desta forma, ataques na região fazem com que o exército russo tenha que estocar munição mais longe do front. Segundo Ignatov, se a Ucrânia quiser atacar a retaguarda russa e os seus depósitos de munição, então ela terá que atacar posições na Crimeia, o que poderia transformar a península em um novo campo de batalha.
Apesar de não haver nenhuma reivindicação oficial por parte do governo ucraniano sobre as explosões, o presidente Volodymyr Zelensky fez uma série de declarações duras na última terça-feira (23). Ele prometeu retomar o controle sobre a Crimeia e descartou a possibilidade de "congelar" a linha de frente do conflito com a Rússia, acusando Moscou de nunca pensar em diálogo com Kiev.
"Para a Ucrânia é vantajoso criar essa sensação de caos, porque a principal linha [da narrativa] do Kremlin é de que o conflito ocorre de acordo com o planejado já há seis meses, mas a Ucrânia mostra que a Rússia está perdendo o controle, ou quer mostrar que a Rússia está perdendo o controle", destaca Ignatov.
Uma possível contraofensiva ucraniana da Ucrânia na Crimeia, sobretudo com o aumento da ajuda militar norte-americana, gera um alerta sobre os riscos da Rússia fazer uso de armas nucleares táticas, considerando doutrina nuclear da Federação Russa. De acordo com o documento, as armas nucleares podem ser usadas em resposta a um ataque nuclear, bem como no caso de outras agressões que ameacem a existência do Estado e ataques a instalações críticas.
É o que argumentou o ex-chefe do Comando das Forças Conjuntas Britânicas, o general Richard Barrons, em entrevista à BBC Rússia. Segundo ele, "se a Ucrânia realmente for bem-sucedida [em uma ofensiva], devemos aceitar o fato de que o uso de pequenas armas nucleares será totalmente consistente com a doutrina militar russa, no entendimento dos políticos e militares russos".
"Não se trata de mísseis balísticos intercontinentais, mas de uma pequena arma nuclear para interromper uma ofensiva que, aos olhos das autoridades russas, ameaçará os interesses do Estado", diz ele.
Enquanto permanece a dúvida se os incidentes na Crimeia representam uma nova fase da escalada do conflito, cresce a especulação sobre os próximos passos de Putin.
Para o analista sênior do International Crisis Group para a Rússia, apesar dos indícios apontarem para uma nova ofensiva russa, o presidente russo ainda precisa concretizar um dos objetivos anunciados na região de Donetsk.
"Todos os especialistas russos com quem eu converso falam que Putin vai decidir o que acontecerá em diante só depois que tomar a região de Donetsk. Ir em frente, parar, ou fazer uma pausa e no ano que vem realizar uma ofensiva novamente. Mas não há nenhum entendimento sobre como essa guerra vai terminar, não há qualquer pista na comunidade de analistas, e acredito que nem entre oficiais do governo há essa ideia", completa.