A jornalista e ativista indiana Teesta Setalvad foi presa na madrugada de 25 de junho de 2022, em sua casa na cidade de Bombaim. Ela foi detida após a apresentação de um boletim de ocorrência no qual se alega que ela teria pressionado testemunhas e produzido materiais sobre o massacre contra pessoas muçulmanas ocorrido no estado indiano de Gujarat em 2002. Teesta Setalvad está detida junto com dois ex-funcionários do governo, com quem havia trabalhado para reunir e divulgar informações sobre os massacres: RB Sreekumar e Sanjiv Bhatt. O mandado de prisão foi decretado após a Corte Suprema da Índia determinar a investigação da jornalista por seu papel na luta por justiça pelos sobreviventes e vítimas do massacre.
A defensora dos direitos humanos está na cela de uma prisão na cidade de Amedabade, na Índia, enquanto os responsáveis pela violência estão nos cargos de poder.
Setalvad é secretária da organização Cidadãos pela Justiça e pela Paz [Citizens for Justice and Peace – CJP], criada para ajudar a defender as vítimas e os sobreviventes do massacre de Gujarat. Em 2015, a grande advogada Indira Jaising escreveu: “O caso contra Teesta cheira a um esquema para dissuadi-la de ajudar as vítimas dos episódios violentos de Gujarat de 2002. As movimentações financeiras de Teesta e da CJP podem ser investigadas, mas a desproporção do processo jurídico, o momento e a insistência da Procuradoria em realizar um interrogatório sob custódia cheiram à vendeta”.
A perseguição contra a jornalista não é um caso isolado. Ela é apenas uma entre muitas escritoras e escritores que estão presos na Índia por investigar as ilegalidades cometidas pelas forças próximas ao partido governante da Índia.
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Nesta segunda-feira, 22 de agosto de 2022, a Suprema Corte da Índia recebe o pedido de liberdade sob fiança para Teesta Setalvad. Em solidariedade a Setalvad e em apoio a todas aquelas que lutam por sua justiça na Índia e ao redor do mundo, Capire compartilha um fragmento do livro de memórias de Teesta, Foot Soldier of the Constitution [Lutadora da Constituição, em tradução livre], publicado em 2017 pela LeftWord Books. No fragmento escolhido, Teesta comenta sua experiência na cobertura jornalística dos conflitos de Gujarat em 2002, expondo a dor de testemunhar a violência religiosa e patriarcal e, ao mesmo tempo, a força do jornalismo militante, em defesa da vida das pessoas e da justiça.
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O telefone não parou de tocar naquela quarta-feira. Desde cerca de nove horas da manhã do dia 27 de fevereiro de 2002 até meses depois, o toque seguiu contínuo e incansável. Gujarat tem vinte e cinco distritos. Eu já tinha viajado a muitos deles antes de 2002, e muitas das matérias e denúncias publicadas na revista Communalism Combat [algo como Combate à Violência Intercomunitária] e em outros lugares tinham resultado em algum tipo de ação administrativa para vítimas e sobreviventes de episódios anteriores de conflitos entre comunidades. Talvez tenha sido por causa dessa história e da confiança que consequentemente se construiu que as pessoas de todo o estado se conectaram de imediato comigo quando as coisas desmoronaram de modo tão trágico em 2002.
Era o dia do incidente de Godhra[1].
[…]
No dia 4 de março, visitei um acampamento de socorro – o Campo Shah Alam – em Amedabade. Lembro que conheci ali mulheres de Naroda Patiya[2]. Elas descreveram como chegaram ao dargah [santuário muçulmano]. Estavam sem roupas quando foram resgatadas – humilhação fácil de narrar, mas difícil de compreender. Isso significa que suas roupas e dignidade tinham sido arrancadas, além de terem sofrido abuso físico durante boa parte de um período de doze a treze horas. Elas ficaram sentadas naquele estado na delegacia de polícia. Tinham sido levadas até o acampamento ensanguentadas, machucadas e nuas.
A guerra santa promovida por RSS, VHP e BJP[3] havia sido deflagrada nos condomínios de Gangotri e Gomti. Esses quartéis residenciais carregavam os nomes da Mãe Ganges, rio sagrado dos hindus sanatanis. Não foram poupados. No dia 28 de fevereiro, os agressores lançaram sua violência contra as mulheres que ganhavam remuneração por dia, e também contra suas filhas e mães. Mulheres e homens de todo o bairro assistiram ao “espetáculo” de barras de ferro e coisas piores sendo utilizadas para decepar meninas, jovens e mulheres muçulmanas inocentes. Uma face assustadora, cruel, militarizada e covarde do darma hindu se manifestava, mil vezes pior que aquilo que testemunhei nas ruas de Bombaim em 1992-93[4]. Com cada multiplicação de terror, humilhação e criminalidade organizada, ficava mais nítido o desenho do Hindu Rashtra [nacionalismo hindu].
Eu estava com meu caderno de espiral e capa laranja e um gravador. Sem nunca depositar total confiança no demônio da tecnologia, sempre me apoiei em minhas extensas anotações e na memória colaborativa. Lembro que conheci um comerciante que viu a mulher ser estuprada. Ela foi uma das raras sobreviventes da violência de gênero. A maioria das outras foi morta após ser violentada. Ele ficou ao lado dela mesmo durante o depoimento dela na justiça. Conheci uma mulher que viu meninas sendo estupradas. Foi horrível – as palavras, os relatos, a monotonia dos detalhes. O que é preciso para uma sobrevivente recontar a história tantas e tantas vezes?
Nós nos encontrávamos em grupos. A essa altura, muitas das sobreviventes já tinham se tornado muito próximas de mim. Conheci as sobreviventes de Gulberg[5] no campo de Dariyakan Ghumbat. Ironicamente, o homem que administrava esse acampamento sempre foi visto pelas sobreviventes como um muçulmano simpatizante do BJP, mas que mesmo assim conduzia o espaço muito bem.
É assustador que, durante sete a oito horas, uma localidade inteira tenha de fato desfrutado de um massacre. Quando mulheres e homens celebram a perseguição e o assassinato persistente, incluindo estupros à luz do dia contra meninas e mulheres, trata-se de um reflexo do espaço público antes e depois da violência macabra. Essa violência também tem um impacto qualitativo no espaço da região. Para Rupabehn Mody e Sairabehn, a perda de um filho adorado foi e é uma ferida tão grande quanto o fato de que seu precioso condomínio – “Gulberg” – tenha acolhido, durante horas no dia 28 de fevereiro, uma carnificina e estupros à luz do dia. Dói demais até falar ou escrever sobre isso. Em Naroda Patiya, 126 pessoas foram mortas no dia 28 de fevereiro, embora o indiciamento oficial aponte 96. Um poço em um campo próximo foi usado como cova das vítimas durante meses.
A absoluta brutalidade dos ataques – ao menos em Amedabade – paralisou inclusive amigos ativistas na cidade. Em Vadodara, o esforço cidadão obstinado de Trupti Shah e Rohit Prajapati segurou as pontas, mas eles não conseguiram visitar distritos periféricos. A cada dia, conversávamos e trocávamos anotações várias vezes. A magnitude da culpabilidade e do partidarismo revelados pela mídia hegemônica de Guzerate foi documentada no relatório de 2002 da Associação de Editores, Erros e Acertos [Editors Guild Report of 2002, Rights and Wrongs]. Os veículos Jansatta, Kutch Mitra e Gujarat Today, jornal muçulmano em língua guzerate, foram os únicos a fazer uma cobertura responsável no vernáculo. O Sandesh e o Gujarat Samachar seguiram a versão do governo, com a pior forma de propaganda. Foi muito assustadora a forma como as percepções se fortaleceram sobre o que tinha acontecido em Godhra, já que 70% da população guzerate se informa por essas publicações partidaristas.
Dezenas de jovens homens e mulheres me procuravam nos acampamentos, amargurados e revoltados. Eu pensava: como recuperar a fé deles no país, no povo, nos seus bairros? Dei um pequeno gravador a um jovem particularmente angustiado e pedi para ele contar o que tinha acontecido. Seria a partir desse tipo de documentação que a justiça seria alcançada.
Duas semanas depois que o Escritório Central de Investigação [Central Bureau of Investigation – CBI], instigado pelo governo Modi, invadiu minha casa em 2015, voltei ao Dargah Shah-e-Alam. Fazia muitos anos que eu não o visitava. As audiências daquele dia no caso de Zakia Jafri[6] na mais alta corte de Gujarat haviam sido encerradas. Já estava uma penumbra. Meu motorista, Aiyyub, relembrava como tinha passado semanas refugiado no dargah. Tinha algo de mágico naquele fim de tarde em 2015 – a luz, as velas acesas, a água cintilante dentro do dargah, a vastidão do espaço. Lembro que olhei em volta para absorver tudo com uma inspiração profunda. Tudo parecia tão amplo naquele momento. Em 2002, com 12,5 mil pessoas amontoadas, o dargah tinha encolhido. Estava lotado e sufocante, com o choro de mulheres e crianças e o silêncio desolado dos homens. Não havia nada de mágico na época. A lembrança daquele tempo interrompeu meu devaneio.
[1] Incêndio atribuído a um ataque muçulmano em um trem, que provocou a morte de 59 hindus. O episódio desencadeou situações de violência em massa contra comunidades muçulmanas nos dias seguintes ao redor do estado de Gujarat, incluindo algumas narradas aqui por Teesta. Pelo menos 1.044 pessoas foram mortas, 223 desapareceram e 2.500 ficaram feridas, segundo dados oficiais.
[2] Região onde aconteceu um massacre no dia seguinte ao incêndio de Godhra. Cerca de 5 mil pessoas organizadas por um grupo hindu de direita passaram mais de dez horas saqueando, violentando, matando e abusando sexualmente de grupos e pessoas muçulmanas.
[3] RSS (Organização Voluntária Nacional) e VHP (Conselho Mundial Hindu) são organizações nacionalistas hindus de extrema direita. BJP é o partido do primeiro-ministro Narendra Modi, que governa a Índia desde 2014. Modi comandava o estado de Gujarat na época dos episódios narrados por Teesta.
[4] Conflitos violentos entre comunidades ocorridos entre dezembro de 1992 e janeiro de 1993. Estima-se que 275 hindus, 575 muçulmanos e 50 pessoas de outras denominações tenham morrido.
[5] Massacre em um condomínio muçulmano localizado em região de maioria hindu no dia 28 de fevereiro de 2002. Houve apedrejamentos e a maioria das casas foi incendiada. Pelo menos 35 pessoas foram queimadas vivas, incluindo o parlamentar Ehsan Jafri.
[6] Viúva do parlamentar Ehsan Jafri, uma das 68 vítimas fatais do massacre do condomínio de Gulberg.
Introdução baseada em um informe da Assembleia Internacional dos Povos (AIP). Edição de Tica Moreno e Helena Zelic. Introdução traduzida do espanhol por Luiza Mançano e fragmento do livro traduzido do inglês por Aline Scátola.