O Rio Grande do Sul tem 670 mil pessoas na fila para consultas pelo Sistema Único de Saúde (SUS). São 196.936 só em Porto Alegre, onde os dados são públicos e disponibilizados no site da prefeitura. Obtidos pelo Grupo de Investigação da RBS (GDI) via Lei de Acesso à Informação, os números informados pelo governo gaúcho apontam que existiam, até 18 de dezembro do ano passado, 473.785 pacientes à espera de atendimento. Ainda conforme esses dados, no Estado, 2.434 pessoas morreram ao longo dos anos de 2023 e 2024 enquanto aguardavam para serem chamadas.
Embora o SUS seja federal, a regulação das filas é feita pelos governos dos Estados, e em algumas cidades a gestão da Saúde é do próprio município, como no caso da Capital. Por isso, existe mais de uma fila.
As especialidades com maior demanda são oftalmologia, ortopedia, otorrinolaringologia, reabilitação e cirurgia geral. O governo gaúcho não informou o número de pacientes na fila por especialidade nem aqueles com mais tempo de espera, conforme solicitado, o que fez a reportagem ingressar com recurso.
Entre os que não resistiram, está uma jovem de 22 anos, de Sapiranga, que morreu na véspera de Natal. Jhenyfer Gabriela do Amaral estava na fila por uma cirurgia na vesícula desde setembro do ano passado. Ela também sofria de depressão e epilepsia. Ao sentir fortes dores no abdômen, foi levada pelos pais à Unidade Básica de Saúde do município, onde foi medicada e liberada. Morreu duas horas depois de chegar em casa.
— O rico tem como pagar um plano de saúde, uma cirurgia. O pobre não tem. Espera pelo SUS. Se tivesse condições, eu não tinha levado minha filha aquela noite para a upa, né? — lamenta o pai, Jandir Gomes Amaral, auxiliar de frigorífico.
A prefeitura da cidade abriu sindicância para apurar o atendimento na UPA. Em nota, ressaltou que “em 2024 o percentual do orçamento municipal destinado para a área chegou a 29%, sendo que a lei prevê 15% do orçamento” para o setor (leia a íntegra abaixo).
Em Esteio, o GDI localizou uma pequena empresária que teme entrar para essa estatística mórbida enquanto aguarda atendimento. Kelly Priscila Maciel Oliveira aguarda há oito anos por uma consulta para iniciar um tratamento bariátrico.
A gente tá morrendo. Se eu não tiver tratamento, eu vou morrer. E eu acho isso um pecado, porque eu tenho um filho de 13 anos, tenho uma filha de cinco anos, que precisam de mim.
A secretária adjunta da Saúde, Ana Costa, pondera que, na lista de mortos, não é possível identificar se os óbitos tem relação com o atendimento que essas pessoas buscavam, mas que o Estado “se preocupa” com cada um.
— Teria que ver cada um dos casos, porque, às vezes, a pessoa aguarda um atendimento, mas o óbito não tem essa correlação direta. Infelizmente, a gente tem perdas, como tem em todas as áreas, e o Estado sempre se preocupa com cada uma delas — afirma Ana.
Em Porto Alegre, além das 196.936 pessoas que aguardam por consulta, outras 152.883 esperam por exames.
— Nós temos como prioridade zero reduzir o tempo de espera na fila de especialidades. Para isso, vamos criar um programa permanente de oferta de consultas especializadas, maior do que a gente tem hoje — promete o secretário municipal da Saúde, Fernando Ritter.
A longa espera por atendimento, além de causar sofrimento aos pacientes, onera o poder público. Isso porque, quando finalmente essas pessoas são assistidas, podem ter tido seus quadros de saúde agravados, terem de ficar mais tempo internadas e ainda adquirirem outras doenças.
É o caso da merendeira Ivone Fraga da Silva, de Porto Alegre, que no próximo dia 21 vai completar três anos de espera. Além de necessitar de cirurgia bariátrica, ela agora vai ter de tratar joelhos e coluna, sobrecarregados pela obesidade mórbida.
— Sinto muitas dores, na coluna, no meu joelho. Estou com artrose nos dois joelhos, esperando prótese, e minha vida só piora. Não consigo trabalhar — declara Ivone.
O presidente do Conselho Regional de Medicina, Eduardo Trindade, confirma esse efeito cascata:
— Se não tratada (a doença original), o paciente pode vir a ter um AVC (acidente vascular cerebral), um infarto agudo miocárdio, problemas ortopédicos mais variados, como problema de quadril e de joelho.
Após 800 dias de espera, cuidadora terá de entrar para a fila outra vez
Em dezembro passado, a cuidadora de idosos Soeli Soares Lopes, que mora em Eldorado do Sul, foi atendida após mais de 800 dias esperando por uma consulta com ortopedista. O objetivo seria tratar uma inflamação no quadril. Enquanto era atendida pelo especialista, descobriu outro problema, agora na coluna, e terá que entrar na fila novamente.
— O desespero é muito grande. Não tem onde mais recorrer. Isso me tirou o chão — lamenta.
A Secretaria Estadual da Saúde diz que tem adotado medidas para reduzir as filas, como a abertura de novas frentes de atendimento em cidades como Santa Maria, na Região Central, e Viamão, na Região Metropolitana.
— O que a gente procura é fortalecer a nossa rede de assistência para cada vez mais dar acesso. Uma outra coisa que está se fazendo é a qualificação das filas. Com um convênio recentemente assinado com o Telesaúde, a gente vai conseguir olhar para essas filas profundamente e tentar garantir a qualidade da informação que o profissional coloca dentro do sistema, para garantir que a informação permita ao regulador colocar o paciente certo no lugar certo — assegura Ana Costa, secretária-adjunta da pasta.
Por sua vez, o Ministério da Saúde diz, em nota, que trabalha continuamente para "para a redução de filas em cirurgias e procedimentos realizados pelo SUS" (leia a íntegra abaixo).
Procurado, o Ministério Público afirmou, em nota, que atua em 31 inquéritos relacionados às filas de espera na Saúde em Porto Alegre e também no interior do Estado. Já a Defensoria Pública do Estado, que tem obtido diversas liminares para garantir atendimento a pacientes, afirma que vai pedir explicações ao governo.
— Esses dados trazidos são bem alarmantes. Vão ser requisitadas informações ao Estado sobre quais providências estão sendo tomadas, se é possível a contratação de novos profissionais de forma urgente para que essa fila do SUS seja diminuída e essas pessoas tenham o acesso que é previsto na Constituição e nas leis. Caso não seja possível, é cabível a ação civil pública, a propositura de uma ação, para obrigar também o Estado a tomar providências, daí de forma judicial — diz defensora pública Roberta Barbosa.