— Não tem mais jeito, vamos ter de abrir caminho para o rio passar — confidencia o prefeito de Roca Sales, Amilton Fontana, em tom resignado após mais um dia de trabalho organizando a limpeza das ruas, a contabilidade dos danos e um novo plano de reconstrução da comunidade devastada pela terceira vez em apenas oito meses pelo turbilhão irrefreável do Rio Taquari.
Entre os locais mais castigados pela atual cheia histórica, ao lado de cidades como a vizinha Muçum e a distante Eldorado do Sul, Roca Sales tem um dos projetos mais ambiciosos para tentar evitar o quarto ato da tragédia. A intenção da prefeitura é mudar toda a zona central de lugar, deixando para trás ruas e prédios engolidos tantas vezes pela água que parecem ter sido erguidos sobre uma zona de maré.
Os outros municípios submersos desenham estratégias diferentes, mas igualmente desafiadoras, para proteger a população e a infraestrutura: Muçum pretende deslocar grandes fatias dos bairros mais suscetíveis às inundações, enquanto Eldorado deposita sua esperança em obras de grande porte para se manter a salvo. Os projetos enfrentam obstáculos como a necessidade de recursos ainda nem calculados, mas certamente superiores aos orçamentos locais.
Um levantamento feito por um grupo de cientistas gaúchos com base em imagens de satélite indica que quase 60% da área urbana de Roca Sales havia sido inundada até o dia 6, comprometendo cerca de 3,6 mil estruturas dos mais diferentes tipos e naufragando de vez a expectativa da comunidade deixar para trás a má lembrança das enxurradas sofridas em setembro e novembro do ano passado. A prefeitura ainda registrou cerca de 200 pontos de deslizamento de terra que desnudaram morros e picotaram estradas. Cenários como esse, registrados desde o espaço no Vale do Taquari e na Região Metropolitana, impressionaram quem monitora o solo a distância.
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— As áreas inundadas na bacia do Guaíba chocam pela imensa extensão que cobrem (mais de 380 mil hectares, sete vezes a área da Capital), e pela grande quantidade de áreas urbanas cobertas por água ou lama: mais de 11 mil hectares. Nos municípios que não contam com qualquer sistema de proteção contra cheias, esses números dão conta da dimensão dos erros cometidos do ponto de vista do ordenamento territorial, com cidades inteiras alocadas em planícies de inundação conhecidas. Já nos municípios como Canoas, Porto Alegre e São Leopoldo, que contam com sistema de muros e diques e contabilizam mais da metade dos diretamente afetados pelas inundações, tivemos uma demonstração do efeito muito real das mudanças climáticas materializado em um evento de proporções que extrapolaram os cenários projetados, extravasando diques, por exemplo — afirma o urbanista Guilherme Iablonovski, cientista de dados na Rede de Soluções para o Desenvolvimento Sustentável da ONU.
O prefeito de Roca Sales espera reverter parte desse problema tirando a cidade da rota das enxurradas. Para isso, pretende contar com duas áreas, de 70 hectares e de 150 hectares, para onde transferir o centro de Roca Sales e o parque empresarial, respectivamente. O plano, em estágio inicial, deixaria a prefeitura responsável por liberar os terrenos, promovendo desapropriações onde necessário e contando com parcerias com Estado e governo federal para providenciar infraestrutura viária, de saneamento e iluminação. Empresários e moradores teriam de viabilizar a construção de novas instalações.
O destino da antiga cidade ainda não está definido, mas jamais voltaria a receber habitantes ou comércio.
— Poderíamos criar uma área de lazer, ou um parque, algo que pudesse ser eventualmente inundado — cogita o prefeito.
Uma estimativa preliminar indica que pelo menos 40% da população teria de mudar de endereço. A ideia é oferecer lotes de tamanhos equivalentes àqueles que se tinha até então para o recomeço longe das margens imprevisíveis do Taquari.