Começou no último domingo (20) a Copa do Mundo do Catar. Dentro de campo, a bola está rolando em oito estádios futuristas e altamente tecnológicos. Fora, a Copa tem sido marcada por polêmicas, como a proibição de manifestações em apoio à comunidade LGBTQIA+ e o fato de milhares de trabalhadores estrangeiros terem morrido na construção destes estádios.
Nesta segunda-feira (21), o Sul21 conversou com o português Miguel Maduro, que presidiu o Comitê de Governança da Fifa entre 2016 e 2017, sobre a omissão da Federação no enfrentamento destas questões e o consentimento da entidade com violações de direitos humanos que estão presentes em seu estatuto. Uma das atribuições que Maduro teve quando presidiu o comitê foi apresentar uma proposta para a adoção de uma política de direitos humanos na entidade. A proposta foi adotada pela Fifa, mas foi apresentada após o Catar já ter sido escolhido como país sede.
“É óbvio que estava entre as nossas preocupações a necessidade de garantir que a preparação desse mundial e a sua execução iria ocorrer conforme aos direitos humanos. Já tendo a Fifa celebrado o contrato de atribuição com o Catar, a capacidade de influenciar a questão dos direitos humanos no país estava diminuída. Porque entre os elementos desta política está a obrigação para qualquer país que receba um evento da Fifa de atuar no respeito dos direitos fundamentais”, diz.
Estimativas de organismo internacionais apontam que entre 6 e 16 mil trabalhadores estrangeiros morreram nas obras da Copa do Mundo. A Anistia Internacional divulgou, em 2021, um levantamento feito com dados oficiais do Catar apontando que 15.799 estrangeiros morreram no país entre 2011 e 2020, mas nem todas as mortes eram relacionadas à obras para o evento.
Para o português, o fracasso da Fifa em garantir o respeito aos direitos humanos na organização da Copa do Mundo do Catar se deve a um problema que considerado como “fundamental” na entidade, que é a ausência de mecanismos independentes de garantia, controle e neutralização de problemas que apareçam durante a preparação para o evento.
“Um dos pontos mais tensos no âmbito desta proposta que nós fizemos é que insistimos que deveria estar que o monitoramento da conformidade da atuação destes países que recebem grandes eventos esportivos com os direitos humanos proclamados nesta política deve ser feita através de um mecanismo independente. A administração da Fifa não queria de forma nenhuma que isso estivesse previsto e ficou previsto na política. Mas, naturalmente, se a Fifa não agir no sentido de garantir a independência dessa entidade, acaba por colocar em questão a continuidade de toda a política. Isso é um processo comum que eu percebi nos poucos meses que estive na Fifa”, diz o português.
Maduro avalia que a Federação não tem problemas em adotar em seu estatuto valores e princípios que estejam em conformidade, por exemplo, com a Declaração Universal dos Direitos Humanos, mas os problemas aparecem quando precisaria garantir que países sede de seus eventos atuem em conformidade com esses princípios e valores.
“É no nível do controle independente que falha o sistema. Você vai encontrar no estatuto da Fifa, em seu código de ética, nesta política de direitos humanos, tudo aquilo que nós achamos belo e necessário. Em nível de valores, proclamação de princípios e regras, a Fifa parece uma entidade quase perfeita, o que falha é o controle independente. O que o meu próprio comitê descobriu é que, quando nós tentamos aplicar as regras de forma independente, isso se tornou um problema para a Fifa”, afirma.
Maduro foi contratado para presidir o Comitê de Governança da Fifa em maio de 2016. O órgão foi criado em um momento em que a imagem da Fifa estava abalada por denúncias de corrupção que envolviam, justamente, as escolhas da Rússia e do Catar como países sede das Copas do Mundo de 2018 e 2022, respectivamente.
O objetivo do órgão era trabalhar para a “limpeza” da entidade, mas Maduro deixaria o cargo após perceber que não tinha independência para realizar o trabalho. O estopim para a saída ocorrem em março de 2017, quando o comitê tentou impedir que o russo Vitaly Mutko, à época vice-primeiro-ministro da Rússia e presidente do Comitê Organizador Local da Copa de 2018, fosse reeleito para o Conselho da Fifa.
Maduro explica que o comitê foi criado com três funções principais: fazer o controle de integridade de pessoas que eram candidatas a cargos diretivos e em comitês da Fifa; monitorar eleições em confederações continentais e federações nacionais; e apresentar uma proposta para o aprofundamento da reforma institucional que a Fifa havia realizado em 2015.
Ele destaca que um dos conflitos que enfrentou quando presidiu o Comitê ocorreu durante as eleições para a Confederação Asiática de Futebol (AFC, na sigla em inglês), quando o órgão apontou que as regras eleitorais discriminavam de forma inaceitável, a seu ver, as mulheres.
“O primeiro congresso que eu participei foi o da AFC e ele foi cancelado na minha frente por acusações de interferência da nossa parte simplesmente porque nós nos opusemos a um mecanismo eleitoral que discriminava de forma clara as mulheres”, diz.
O caso mais notório, contudo, foi justamente quando o comitê tentou impedir que Mutko participasse da eleição para o Conselho da Fifa. “É muito claro, para mim, que quando as pessoas em causa não eram do círculo próximo ou do poder da Fifa, não havia problemas em nós agirmos. Os problemas começavam quando a gente focava nas pessoas realmente poderosas. Aí tudo se tornava mais complicado, vinham os argumentos de que nós estávamos colocando em risco a organização do mundial na Rússia, que nós não estávamos levando em conta os equilíbrios de poder internacionais que eram necessários preservar, todo esse tipo de argumentação que me levou à conclusão de que um dos problemas fundamentais da Fifa, não é o único, e da cultura de governo do mundo do futebol é a inexistência de uma cultura de ‘rule of law’, aquilo que nós chamamos de estado de direito, de aplicação igual das regras para todos. As regras muito bonitas estão lá, mas para ser aplicadas de forma seletiva, e isso, obviamente, coloca em questão a integridade do cumprimento delas”, diz.
Maduro avalia que esta adoção seletiva de regras e princípios está sendo vista na Copa do Mundo Catar. Apesar de pregar oficialmente uma posição contra discriminações de qualquer tipo e promover campanhas ao longo dos anos de respeito a este princípio, eles são colocados de lado quando confrontam interesses financeiros da entidade.
O Código Penal do Catar proíbe e prevê pena de até três anos de prisão para relacionamento sexual entre homens. Além disso, organismos internacionais de direitos humanos denunciam a perseguição de pessoas da comunidade LGBTQIA+ mesmo em casos em que não há acusação formal.
Em protesto contra isso, capitães de sete seleções europeias se organizaram para usar braçadeiras nas cores do arco-íris e com mensagens em defesa da comunidade LGBTQIA+. No entanto, a Fifa ameaçou punir os jogadores. Até o momento, todos os jogadores que já entraram em campo, como o caso do inglês Harry Kane, desistiram da manifestação.
Miguel diz que, em seu ponto de vista, a Fifa não tinha nenhuma base nas regras do jogo para ameaçar os capitães que entrassem em campo com a braçadeira.
“Foi puro poder de intimidação. A Fifa poderia, eventualmente, impedir peças de indumentária que não estivessem de acordo com as suas delimitações. Por exemplo, calções muito compridos. Agora, as cores e as composições da braçadeira só poderia se elas tivessem mensagens políticas. Mas, no meu ponto de vista, isso não inclui uma mensagem que se limita a reproduzir algo que encontramos no próprio estatuto da Fifa. Ou seja, a Fifa não pode impedir uma federação de usar como cores, da sua braçadeira ou da sua camiseta, que correspondem a algo que a própria Fifa proclama em seu estatuto, que é a não discriminação”, diz.
Ele pontua que a punição prevista nas regras da Fifa por violação do princípio de neutralidade política é reservada para casos em que jogadores se manifestam a favor de um lado ou de outro em um conflito internacional, por exemplo. “Mas, nesse caso, não se trata de uma declaração desse tipo, trata-se simplesmente de uma manifestação que está de acordo a um valor que pertence ao estatuto da Fifa. A meu ver, é um exemplo claro de que a própria Fifa, sem qualquer base jurídica, usa do seu poder”, diz.
Maduro diz que os problemas relacionados à falta de independência de órgãos da própria Fifa são históricos e, na verdade, ocorrem também em outros grandes eventos, como na organização dos Jogos Olimpícos. No caso do Catar, ele destaca que o Comitê de Ética da Fifa começou a investigar as denúncias de corrupção no processo de escolha do país como sede da Copa — o processo também abordava a escolha da Rússia para a Copa de 2018 –, mas que a falta de independência para levar adiante a apuração dos fatos levou o norte-americano Michael Garcia, investigador-chefe do órgão, a pedir demissão ainda em 2014.
Garcia justificou o pedido de demissão justamente pela falta de independência para realizar o trabalho. “Nenhum comitê de governança independente, investigador ou painel arbitral pode mudar a cultura de uma organização”, disse Garcia à época.
Maduro pondera que a Fifa tem grandes poderes quando se tratar da organização da Copa do Mundo, obrigando, inclusive, os países sede a aprovarem um conjunto de leis, mas que ela opta por se omitir em casos de corrupção e também de violações de direitos humanos.
“Quando a Fifa negocia as condições de realização de um mundial, por exemplo, ela impõe aos estados que acolhem o mundial um estatuto fiscal especial, exigindo deles que alterem suas legislações tributárias. Olha, se faz isso, porque não pode fazer o mesmo para garantir que esses países se comprometam com certos padrões de proteção dos direitos do trabalhador nas construções das infraestruturas necessárias ao mundial? Ou que, durante a organização do mundial, os estados se comprometam a cumprir com a não discriminação dos fãs com base na orientação sexual? Nada impede, pelo contrário, tudo exigiria, no âmbito do estatuto da Fifa, que assim fosse. Mas aquilo que vimos é que sempre que os valores que a própria Fifa proclama entraram em conflito com os interesses financeiros da Fifa, estes últimos sempre prevaleceram”.