Na noite do último domingo (15), a auxiliar de enfermagem Tamara Henicka, 40 anos, dirigia o seu automóvel Peugeot pela rodovia RS-423, percorrendo 57 quilômetros entre Lajeado e Progresso, pequena cidade agrícola de 6,2 mil habitantes que faz parte do Vale do Taquari. A região, formada por 40 municípios, tornou-se nacionalmente conhecida pela devastação causada pelas enchentes de 2023 e 2024, que mataram 34 pessoas e deixaram 20 desaparecidas, além de uma longa lista de prejuízos materiais. No sentido contrário ao de Tamara vinha uma caminhonete S10, dirigida por um jovem de 15 anos. Que perdeu o controle do veículo e chocou-se de frente com o Peugeot de Tamara. Ela morreu na hora. Vários motoristas que passavam pelo local pararam para socorrer os acidentados, entre eles o de um Jeep Renegade que desceu apressadamente do veículo e deixou o motor ligado. O jovem envolvido no acidente aproveitou a distração, embarcou na Renegade de maneira furtiva e fugiu em direção a Lajeado. A Polícia Rodoviária Federal (PRF) foi avisada do furto e uma patrulha saiu em sua perseguição. No momento que deixou a RS-423 e ingressou na BR-386, uma movimentada e perigosa rodovia de 600 quilômetros de extensão que liga a Região Metropolitana de Porto Alegre ao oeste catarinense, o jovem mais uma vez perdeu o controle do veículo, que capotou, ejetado-o da cabine. Muito ferido, foi resgatado e internado no Hospital Bruno Born, no centro de Lajeado. De acordo com o noticiário, o jovem já teve problemas com a polícia por pilotar de maneira ilegal uma moto. O acidente que vitimou Tamara está sendo investigado pela delegada Márcia Benini, da Polícia Civil.
Estou citando este caso porque me lembrou de uma conversa que tive nos anos 80 com um velho policial da PRF. Na ocasião, eu estava de plantão na redação no final de ano. E aconteceu um acidente semelhante a este que citei no interior gaúcho. Tive a sorte de ligar e ser atendido por este policial. Na época, não existiam telefones celulares, portanto o trabalho do plantão na redação era complicado. Durante a conversa que tivemos, ouvi do policial rodoviário que o “modo de vida” nas pequenas cidades agrícolas facilita o acesso de jovens não habilitados à direção dos veículos. Eles começam dirigindo nos arredores de suas casas, depois pelas ruas da cidade e dali acabam indo para as estradas. Eu nasci nos anos 50 em Santa Cruz do Sul, no Vale do Rio Pardo, depois a minha família mudou-se para Encruzilhada do Sul, pequena cidade no alto da Serra do Sudeste, onde a água congela nos canos no inverno, e convivi com essa realidade durante toda a minha infância e adolescência. Entre os livros que escrevi na lida de repórter, três deles (O Brasil de Bombachas, de 1995, O Brasil de Bombachas – As novas fronteiras da saga gaúcha, de 2011, e De Pai para Filho na Migração Gaúcha, de 2019) contam a história do povoamento, pelos gaúchos e seus descendentes, das fronteiras agrícolas, como eram chamadas as regiões escassamente povoadas no oeste de Santa Catarina e do Paraná e nos estados do Centro-Oeste, como Mato Grosso do Sul e Mato Grosso.
Somado o tempo que fiquei viajando para escrever estes três livros, passei quatro meses na estrada. Estive em dezenas de pequenas cidades agrícolas, onde convivi com essa realidade: jovens dirigindo sem possuir a Carteira Nacional de Habilitação (CNH), popularmente conhecida como carteira de motorista. Essas pequenas cidades agrícolas, nos dias atuais, são comunidades de classe média, graças ao desenvolvimento do agronegócio. Já as cidades do Vale do Taquari alojam um dos setores mais poderosos do agronegócio, que é a produção de carnes de frango e suínos. Além de leite e seus derivados. Também é uma região com muitas agroindústrias que geram centenas de empregos. Nas cidades do agronegócio, sejam elas pequenas, médias ou grandes, toda a economia gira em torno do trabalho do agricultor. A maioria desses municípios ou é cortada por grandes rodovias estaduais e federais ou está localizada nas proximidades delas. E não são só os jovens que representam um perigo para quem transita por estas rodovias. Os adultos também. Nos fins de semanas, costumam se reunir “nas festas no interior”, como chamam as churrascadas e os torneios de futebol, quando rola muita cerveja, chope e outras bebidas alcoólicas. No final do dia, pegam as suas possantes caminhonetes e rumam para casa, geralmente transitando por uma rodovia estadual ou federal. Sempre que viajava a trabalho nos fins de semana alertava o motorista do jornal: “Fica atento, porque eles saem dessas estradinhas pisando fundo no acelerador e atravessam a rodovia sem olhar para os lados”.
O que descrevi é a realidade no trânsito das pequenas cidades agrícolas. Ninguém me contou ou eu li sobre isso em algum relatório. Como já disse, fiz muitas reportagens a respeito do assunto e sei como as coisas são. Não adianta as autoridades mandarem cercar as estradas municipais, estaduais e federais com guardas de trânsito. É preciso muito mais que isso, por se tratar de “um modo de vida”, como descreveu o velho policial rodoviário com quem conversei muitos anos atrás. É preciso uma ação de educação. Um programa governamental que explique para as populações dessas localidades que o mundo mudou. Os carros modernos têm motores possantes, alta tecnologia, e para dirigi-los não basta ligar o motor. É preciso estar habilitado e conhecer a lei. Conheço agricultores que, na década de 80, andavam no lombo de um cavalo e hoje dirigem caminhonetes possantes. No início de 2024, encontrei um deles em um posto de gasolina na BR-386, em Carazinho, interior gaúcho. Com grande orgulho ele me mostrou o interior do seu “caminhonetão”. Conversa vai, conversa vem e ele me disse que não sabia para que servia a metade dos botões que havia no painel. Para encerrar a nossa conversa. O acidente que vitimou Tamara está sendo investigado e deverá ser esclarecido pela Polícia Civil. Mas muitos outros casos semelhantes devem se repetir. Enquanto as autoridades dos governos federal, estadual e municipal não se derem conta que têm nas mãos um problema que merece atenção especial, a única coisa que resta para quem transita pelas regiões agrícolas do Brasil é tomar cuidado para não ser a próxima vítima.