Às vésperas do 59º aniversário do golpe militar que asfixiou as liberdades por 21 anos no Brasil, as Forças Armadas vivem uma crise de imagem. De acordo com pesquisas recentes, elas têm perdido o respeito da população após assumirem, no governo Bolsonaro, um protagonismo inédito no governo federal desde a redemocratização.
Uma pesquisa da AtlasIntel divulgada no dia 1º de fevereiro deste ano mostrou que 41% da população confiam nos militares, 39% não confiam e 20% não tinham opinião sobre as Forças Armadas. No mesmo levantamento, o Congresso Nacional e o Superior Tribunal Federal (STF) tiveram percentuais maiores que os militares, ambos com 42% de confiança.
Porém, os brasileiros que não confiam no Congresso Nacional e no STF, de acordo com a pesquisa, somam 57% e 47%, respectivamente, números maiores que o índice de desconfiança nas Forças Armadas.
Com 360 mil servidores, as Forças Armadas têm previsão orçamentária de R$ 124,4 bilhões em 2023. Deste valor, 78,2% serão gastos com pessoal. Analistas acreditam que elas terão muito menos influência no governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT), que voltou a nomear um civil para o Ministério da Defesa, José Mucio Monteiro Filho, depois de quatro anos de militares à frente da pasta.
O antropólogo Piero Leirner, que pesquisa o meio militar há mais de três décadas, lembrou que o Congresso Nacional e o STF foram os "objetos da turba golpista" e analisou os dados do levantamento. "A 'desconfiança' recaiu sobre todo mundo. Isso para mim é um sinal interessante, pois pode ser uma evidência de que aquilo que vem ocorrendo nos últimos tempos surtiu efeito: uma espécie de desestabilização da percepção social sobre a política, as instituições e as tais 'regras do jogo'".
Na pesquisa "A cara da democracia", que é realizada anualmente, é possível ver o recuo na popularidade das Forças Armadas durante o governo Bolsonaro. Em 2018, durante a campanha, 31% dos brasileiros diziam confiar muito nos militares. Esse índice caiu para 29% em 2019; 26% em 2021; e 25% em 2022 (em 2020 não houve levantamento).
Em 2008, uma pesquisa da Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) revelava que 75,5% dos brasileiros confiavam nas Forças Armadas. Em 1995, medição qualitativa feita pelo Instituto Vox Populi deu nota 3,2, de um máximo de 5, para os militares.
O sociólogo Marcos Coimbra, fundador e diretor do Vox Populi, se recorda do levantamento feito pelo instituto em 1995. "Esse número certamente diminuiu com o passar do tempo, era uma nota alta. Se fôssemos repetir exatamente o mesmo modo de perguntar, é muito provável que essa queda fosse flagrada hoje. Recordo que nas perguntas notamos que as Forças Armadas amedrontavam as pessoas, não havia sentimentos como carinho ou qualquer afeto por essa instituição. É uma instituição cara, cheia de privilégios e não fez escolhas políticas que os aproximassem da população."
Para Coimbra, há uma interpretação da população de que "os militares são ociosos" e a queda histórica é justificada pelas "escolhas que a Forças Armadas fizeram, de se associar a um personagem terrível, que é reprovado pela maior parte do país. Esse vínculo foi se estreitando ao longo do tempo, de ambos os lados. Esse cidadão, o Bolsonaro, cooperou para o desgaste das Forças Armadas."
"O prestígio das Forças Armadas parece ter sofrido algumas ranhuras, em decorrência do envolvimento intenso da instituição no governo Bolsonaro", explica Ana Penido, pesquisadora do Grupo de Estudo em Defesa e Segurança (Gedes-Unesp) e do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social, que propõe uma reflexão sobre a imagem da instituição.
"Se você vai a um médico do SUS e acha que o atendimento dele foi ruim, pode avaliar se foi bom ou ruim. Se vai a um posto da assistência social ou passa por uma estrada cheia de buracos, pode avaliar a qualidade do serviço recebido. No caso das Forças Armadas, o prestígio que elas têm não é relacionado com a sua finalidade, a política de Defesa, a capacidade de proteger ou defender o Brasil diante de conflitos internacionais", explica Penido.
A pesquisadora elencou, então, os motivos que podem explicar os índices de aprovação que os militares já alcançaram. "Por exemplo, quando elas levam água para comunidades isoladas, quando vacinam pessoas diante de uma pandemia ou fazem obras viárias diante de um desastre."
Para Piero Leirner, é preciso qualificar pesquisas e análises para associar a queda da popularidade das Forças Armadas a Bolsonaro. "Na minha opinião esta queda deveu-se muito mais à exposição negativa que os militares começaram a ter na imprensa – primeiro, aos poucos, com casos de superfaturamentos, doce de leite e Viagra e depois especialmente com a associação direta ao 8 de janeiro. Eles ficaram operando tudo isso 'dentro da margem de erro'. Isto é, ao mesmo tempo participando do Governo e dos arroubos de Bolsonaro, mas negando o tempo todo."
Uma outra perspectiva sobre a imagem dos militares seria possível se os institutos de pesquisa realizassem seus levantamentos em outras áreas, defende Penido. "Eu desconheço pesquisas sólidas com grupamentos em que as Forças Armadas tenham operado no território, como as operações de Garantia da Lei e da Ordem (GLO) nas periferias. O mesmo vale para a atuação deles nas fronteiras. Eu desconheço também pesquisas de opinião sobre a confiabilidade das Forças Armadas feitas junto às comunidades indígenas."
Comunicação positiva
Para quem julga que os crimes cometidos por militares durante a ditadura no país deveriam servir para que as Forças Armadas tivessem popularidade próxima de zero, Piero Leirner não traz boas notícias.
"Acho que a maior parte da população não está nem aí para isso. Perdeu-se o timing, essa ficou sendo uma questão minoritária", explica o antropólogo. O distanciamento dos crimes cometidos durante a ditadura é um dos méritos da comunicação das Forças Armadas, segundo Ana Penido.
"A guerra pela opinião pública é talvez mais importante do que a física. As Forças Armadas passaram a especializar setores inteiros em áreas como guerra psicológica, que hoje alguns analistas chamam de 'guerra híbrida', que usa diversas táticas para desestabilizar governos nacionais", conta a pesquisadora.
"Durante a tragédia em Brasília no dia 8 de janeiro, os militares passaram pano de forma geral para a destruição que estava acontecendo. Então teve a crise Yanomami e eles rapidamente saíram e começaram a levar ajuda em aviões. Há muitas imagens dos militares ajudando a salvar os indígenas, os mesmos militares que eram responsáveis pela Amazônia, como o atual senador Hamilton Mourão, que viram o garimpo entrar e ficar naquela região", encerrou.