Para tratar de tema tão sensível, e em homenagem às crianças que vivem em acampamentos e assentamentos por todo o país e que lutam, junto de suas famílias, pela terra e por condições dignas de vida e de trabalho, em homenagem às mulheres do campo e o direito a semear, plantar, colher e produzir, em homenagem aos homens camponeses do Brasil e sua força de trabalho em prol de uma sociedade livre da miséria e da fome e em direção à agroecologia, façamos um trato contra a ignorância e a estupidez em matéria de direito à terra.
Ocupação não é o mesmo que invasão. A Constituição Federal de 1988 define o conceito de uso social da terra e os critérios para que seja legítimo, que não degrade o meio ambiente, que não se faça por meio de trabalho escravo ou análogo e que seja produtiva. A ocupação de terras tem sido historicamente a forma pela qual os movimentos camponeses chamam a atenção para este compromisso de direitos fundamentais e da necessidade de que a propriedade venha acompanhada de uma função social. Confundir os dois conceitos propositalmente é uma forma de negar a luta pela terra e os legítimos sujeitos de direito, assim reconhecidos pela Declaração da ONU sobre Direitos dos Camponeses.
A ocupação pode ser uma forma legítima de fazer pressão e chamar atenção para o descaso com a Reforma Agrária. As ocupações que aconteceram no sul da Bahia, nas terras da maior empresa de celulose do mundo, trouxe ao conhecimento da sociedade um acordo descumprido desde 2011 entre a empresa e o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), termo mediado pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) e que afeta direitos de 750 famílias que aguardam há 12 anos pela cessão das terras. Trazer luz para o caso concreto e também para a desativação das instituições de regulamentação fundiária é parte do papel das ocupações.
As ocupações podem ser uma forma legítima de rediscutir o sentido social da terra. Também o referido caso, já em processo de renegociação, revela aspectos da produtividade da monocultura que devem ser objeto de rediscussão pela sociedade brasileira e pelos órgãos de controle e financiamento público. É o caso da monocultura do eucalipto, cultivo incrementado com o uso de agrotóxicos aplicados inclusive por meio da pulverização aérea, o que gera efeitos indiscriminados de envenenamento.
Eis a razão pela qual florestas de eucalipto são chamadas “desertos verdes”. Essa foi uma expressão que surgiu no debate a respeito da legitimidade das ocupações. Para que o eucalipto prospere, a mata nativa precisa sair do lugar, acarretando produção de uma só cultura utilizada para desenvolver a indústria moveleira e de celulose. Só a empresa do Sul da Bahia cultiva 3 milhões de hectares de eucalipto, o que forçosamente acarreta brusca redução da biodiversidade no território.
Ao mesmo tempo, a cadeia de fauna e flora fica reduzida a uma única espécie exógena, uma vez que o eucalipto não é arvore nativa brasileira e, para agravar o problema específico do agronegócio associado à indústria de celulose, tanto a forma de cultivo como as substâncias utilizadas para intensificar a produção desgastam o solo e comprometem a recuperação de futuras florestas nativas.
Existem soluções para aplacar efeitos nocivos, saídas da ciência e da tecnologia, mas diante dos efeitos devastadores e da imposição acrítica do agronegócio como única saída econômica, as ocupações de luta pela terra cumprem o papel de denunciar e despertar a reflexão da sociedade a respeito dos meios e métodos produtivos predominantes incentivados (por renúncias fiscais ou financiamento) diante da realidade de 33 milhões de pessoas que passam fome no Brasil.
Em meio ao debate, cresce o entendimento do que seja Reforma Agrária Agroecológica. Os movimentos pela terra, o MST em particular, têm defendido que a luta histórica pela Reforma Agrária seja substituída pela Reforma Agrária Agroecológica, compreendida nas dimensões da produção do alimento saudável e sustentável para toda a sociedade brasileira, isso em contraposição ao agronegócio. O debate inclui, além do acesso à terra como um direito humano, também a produção de alimentos salubres e livres de agrotóxicos, a defesa das formas de vida e trabalho no campo, o papel da mulher camponesa, a forma de organização em cooperativas da agroecologia, a riqueza da (bio)diversidade alimentar, a soberania alimentar, o combate à fome e tantos outros conceitos e efeitos de um debate responsável e consequente.
O que esperar do temido Abril Vermelho?
É notável a desinformação provocada por setores da imprensa e meios especializados que repercutem intolerância e preconceito contra camponeses e suas lutas. Mesmo involuntariamente, a desinformação estimula promessas de violência, atos potencialmente criminosos cogitados por fazendeiros com respeito ao uso de armas de fogo contra militantes.
No histórico mês de mobilização pela Reforma Agrária, conhecido como Abril Vermelho em memória do Massacre de Eldorado dos Carajás, o MST atualiza as pautas de luta em 2023: repúdio aos agrotóxicos, fim do desmatamento, oposição à aprovação do novo Código Florestal em trâmite na Câmara dos Deputados e reconstituição dos canais estatais (Incra e outros) para finalmente viabilizar o assentamento de mais de 100 mil famílias que aguardam pelo acesso à terra.
Conhecer o contexto dos enfrentamento e das ocupações é condição elementar de respeito à luta dos trabalhadores rurais do país, além de ser um dever legal e uma oportunidade de estimular a produção de alimentos saudáveis como alternativa ao envenenamento cotidiano ao qual estamos submetidos.
* Carol Proner é professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), integrante da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD) e do Grupo Prerrogativas.
** Este é um artigo de opinião. A visão da autora não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
*** Artigo publicado originalmente no Brasil 247.