A utilização do cacto na alimentação humana é muitas vezes associada às narrativas sobre insegurança alimentar nos períodos de estiagem no semiárido brasileiro. Por outro lado, as variedades desse vegetal são ingredientes muito saborosos, nutritivos e que valorizam a diversidade e a cultura brasileira, em contextos de soberania alimentar.
"Quando vamos ao mercado, nossa biodiversidade e os saberes da nossa cultura não estão ali"
De olho nessas muitas propriedades, os cactos vêm ganhando espaço nas pesquisas de universidades, nos cardápios de restaurantes e na mesa de famílias de diferentes regiões do país e do mundo.
Os cactos são cada vez mais valorizados em refogados e recheios, e também estão presentes em base de pães, bolos, geleias, doces, sucos e até sorvetes, unindo sabor e saúde no prato de quem está disposto a romper estereótipos.
“Existe uma grande variedade dentro da família de cactáceas. No Brasil, 37 gêneros já foram identificados. Por algumas características da nossa cultura, esses vegetais são usados na alimentação animal, por isso existe uma resistência no uso desses vegetais na alimentação humana pela população rural. Em outros países eles são consumidos normalmente, como no México, onde cactos são comercializados em supermercados”, diz a engenheira de alimentos e professora do curso de Nutrição da Universidade Estadual da Bahia, Clicia Benevides.
Quem torce o nariz para a planta espinhosa deve saber da possibilidade de já ter comido e se deliciado com cactos, como a ora-pro-nóbis, uma das únicas cactáceas com folhas, e a pitaya, fruto de uma de espécie de cacto muito valorizada comercialmente.
Além das espécies cactáceas mais convencionais, é possível preparar receitas deliciosas com xique-xique, facheiro, coroa de frade, palma e mandacaru, por exemplo. Na maioria dos casos, tanto os frutos como partes do caule, chamadas de raquetes, podem ser consumidas.
Como a variedade de espécies é grande, o teor nutricional de cada uma também varia, mas em geral os cactos apresentam alguns nutrientes em comum, como explica a pós-doutora em Engenharia de Alimentos, Deborah Otero, que saiu do Rio Grande do Sul, sua terra natal, para ir à Bahia estudar o potencial nutricional dos cactos e dar ahulas na Universidade Federal da Bahia.
“De forma geral, os cactos são compostos por vitaminas, minerais, carboidratos e concentrações significativas de proteínas, lipídios e fibras. Eles tem uma concentração grande de água e colaboram para a hidratação do corpo. Além disso, tem compostos bioativos e potencial antioxidante, que combatem os radicais livre no nosso organismo”, diz Debora.
Entre as principais vitaminas presentes nos cactos estão a vitamina C e a vitamina B1, além de cálcio, sódio e proteínas. Até hoje, nenhum estudo identificou contraindicações no consumo desses vegetais, mais um incentivo para experimentar a iguaria quando houver oportunidade.
“A FAO [Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura] fala que os cactos são o alimento do futuro e que tem grande potencial nutricional. Esperamos que no futuro a mãe olhe para o filho e fale: ‘você já comeu seu cacto hoje?’”, brinca Deborah. “Eles podem contribuir para segurança alimentar, para garantir uma dieta completa para a população e por serem vegetais que crescem em ambientes secos e rudes, sem precisar de cuidado e atenção. Eles nascem de forma espontânea e estão a disposição da população.”
Além de garantir segurança alimentar e nutricional, o consumo de cactos pode fortalecer a cultura tradicional e valorizar espécies nativas e receitas ancestrais.
“A cozinha tradicional reflete a identidade regional e local e como eu sou descendente de cearenses, os cheiros e sabores do sertão dialogam com minhas memórias gustativas. Assim cozinhar e comer alimentos da caatinga, como os cactos, para mim é como um retorno ao lar, a casa dos meus pais, a casa dos meus avós, a casa dos meus ancestrais”, pontua a gastróloga e historiadora Uerisleda Alencar Moreira, de Salvador, que aposta nos cactos em suas receitas, em especial na palma forrageira, na ora-pro-nóbis e na pitaya.
Uerisleda conta que o preparo das cactáceas pode ser muito simples e parecido com a forma de se preparar outros legumes.
“Se alguma vez você já fez alguma preparação com chuchu você vai saber cozinhar cactos, porque tudo o que se faz com chuchu pode se fazer com cacto. Ambos tem um bom aporte de minerais e bastante água. Mas nada de cozinhar cacto ou chuchu só com água, porque não fica saboroso. É preciso utilizar temperos e usar pouca água”, diz. “Eu amo fazer doce de palma forrageira. É necessário um quilo de palma previamente fermentada, 300 gramas de açúcar ou rapadura e um coco ralado. É só levar ao fogo e cozinhar tampado, mexendo de vez em quando.”
A recomendação é que as frutas sejam consumidas in natura e as raquetes cozidas ou refogadas, mesmo na preparação de doces. “Comecei a utilizar cactos como uma maneira de valorizar os saberes populares da cozinha brasileira. Quando vamos ao mercado, muitas vezes nossa biodiversidade não está ali e muitos dos saberes da nossa cultura também estão ausentes. Usar cactos e outros ingredientes tradicionais de determinadas comunidades, sem cadeia produtiva, pode ser uma forma de valorizar a manter viva as tradições de uso”, conclui a gastróloga.