Qual o sentido da presença da bandeira de Israel em algumas manifestações bolsonaristas? Ainda mais quando todos sabem do genocídio contra o povo judeu no século 20 operado pelo nazifascismo e dada a filiação neofascista do bolsonarismo? Como é possível que parte da comunidade judaica brasileira apoie um governo com o lema “Brasil acima de tudo”, copiado da Alemanha de Adolf Hitler?
Tentando entender estes fatos, Brasil de Fato RS procurou representantes da comunidade judaica no Rio Grande do Sul. Cinco deles responderam às mesmas três indagações. Veja suas respostas:
Brasil de Fato RS - A bandeira de Israel tem aparecido com certa frequência em eventos bolsonaristas, o que parece incongruente dado o perfil fascista do bolsonarismo e a violência nazifascista sofrida pelo povo judeu sob o nazismo, versão alemã do fascismo, que redundou em genocídio. O que a bandeira de Israel está fazendo em tal companhia?
Iair Grinschpun - professor de História, formado pela UFRGS
“Há um movimento da extrema direita no mundo inteiro. Esses grupos estabelecem conexões. É o que se percebe com governos como da Hungria de Orban, Polônia de Andrzjev Duda, EUA de Trump, Chile de Kast, França de Le Pen, entre outros. Nesse contexto, a extrema direita israelense, de Bibi Netanyahu, acaba se enquadrando nesse movimento.
Outro elemento dessa exposição da bandeira é a criação de uma “Israel imaginária”, muito longe da realidade, que a extrema direita brasileira e grupos evangélicos idealizam. Há uma apropriação indevida de símbolos do judaísmo para tentar legitimar suas pautas reacionárias. Desconhecem ou ignoram deliberadamente que Israel é um país extremamente avançado em questões sociais como igualdade de gênero, aborto legalizado, ativo movimento LGBTQIA+ com todos os direitos reconhecidos, entre tantos outros.”
Existe uma apropriação de símbolos judaicos e não só da bandeira
Dael Luis Prestes Rodrigues - professor de Filosofia, com mestrado em Ética e Filosofia Política
“Os pentecostais miram um Israel antigo. O Israel atual não se coaduna com os valores que movem igrejas evangélicas pentecostais. O uso da bandeira pelos bolsonaristas se liga ao pressuposto acima.”
Marcelo Sikinowski Silveira - bacharel em Direito
“A presença da bandeira não se explica pelo apoio de judeus (uma comunidade politicamente plural) mas pela apropriação simbólica por setores evangélicos neopentecostais. E não apenas apropriação da bandeira, um símbolo político, mas também da menorá, do talit, da kipá e de outros símbolos religiosos. Na internet existem imagens de pastores evangélicos com adereços judaicos e em São Paulo existe uma réplica do Segundo Templo de Jerusalém, construído pela Igreja Universal do Reino de Deus.
O discurso bolsonarista na pauta dos costumes angaria o apoio de evangélicos neopentecostais. Adotar símbolos do que eles consideram ‘o povo escolhido’ é uma forma de eles mesmos passarem a se definir como povo escolhido(...) Enxergam essa Israel imaginária como ‘um grande exército que tem um país’, o que atende ao ideário fascista de alguns setores neopentecostais(...) Enxergam Israel como um exemplo de livre-mercado, como um celeiro de ‘start-ups’ que dialoga com a sua teologia da prosperidade. Ignoram o papel que o Estado tem em Israel na saúde e na educação. Para eles não importa a Israel real, onde existe uma legislação bem liberal sobre o aborto, onde o movimento LGBTQIA+ tem expressiva força política.”
Ilton Gitz – professor de Cultura Judaica e de Hebraico
“Os evangélicos é que usam a bandeira. Mas aquela bandeira não representa o estado de Israel moderno. Representa um reino judaico, que seria o precursor da vinda do Messias. Não tem nada a ver com Israel e não tem nada a ver com os judeus.”
O bolsonarismo tem várias semelhanças com o regime nazista de Hitler
Renato Levin Borges - doutor em Educação com tese de doutoramento sobre a extrema direita
“O uso da bandeira tem a ver com a sinalização simbólica para os pentecostais. Constroem um judeu imaginário, que não é palpável, uma continuação da ideia de ‘povo escolhido’. A comunidade judaica é cheia de contradições e com uma tradição à esquerda bastante relevante. A gente não pode esquecer de Marx, de Trotsky e da própria fundação do estado de Israel com o apoio da União Soviética, além de experiências socialistas como os kibutz, fazendas de autogerenciamento e de solidariedade.
O uso da bandeira de Israel é uma construção simbólica de uma Israel de direita, conservadora, homogênea. É mais uma projeção do que algo que tenha a ver com o povo judeu. Porque o bolsonarismo, efetivamente, tem várias semelhanças com o regime nazista de Hitler, além de outras modulações também fascistas.”
BdF RS - Durante o governo Bolsonaro tivemos um secretário de cultura que fez um cover de Joseph Goebbels, enquanto um alto assessor presidencial fez a saudação do supremacismo branco dos EUA durante uma sessão em uma das comissões do Congresso. Como é possível um judeu apoiar um governo com tais valores?
Iair Grinschpun
“O bolsonarismo – como qualquer movimento de extrema direita – se baseia no ódio, na agressividade, no rancor e na irracionalidade. Bolsonaro legitimou o que há de mais mesquinho e estúpido no ser humano. Tal como o nazismo (pois é um governo nitidamente neonazista), baseia-se em premissas falsas, meias verdades e frases de efeito para conseguir captar o máximo de simpatizantes, dos espectros mais variados da sociedade, sempre alimentando preconceitos, distorções sociais e históricas e instituindo o pânico moral. Assim, conseguiu produzir uma legião de pessoas sem o menor senso crítico ou discernimento, tais como: negros racistas, mulheres machistas, cristãos armamentistas (pastores dos mais variados); gays conservadores; médicos negacionistas e judeus nazistas.”
É preciso acabar com essa ideia de que os judeus apoiam Bolsonaro
Dael Luis Prestes Rodrigues
“O judeu que vota em Bolsonaro não se preocupa que Bolsonaro seja nazifascista. O que importa é que Bolsonaro seja liberal. Porque os liberais não têm pudor em apoiar os fascistas. Não há contradição entre o liberalismo e o fascismo. O fascismo é o filho violento do liberalismo.”
Marcelo Sikinowski Silveira
“É preciso acabar com essa ideia de que ‘os judeus apoiam Bolsonaro’. Nós nos organizamos em comunidades plurais, multifacetadas. E sempre foi assim. Houve judeus no fascismo italiano antes da guinada antissemita de Mussolini. Houve apoiadores de Hitler na infame Associação dos Judeus Nacionais Alemães antes de serem aniquilados. Há judeus apoiadores do bolsonarismo e do trumpismo. Mas historicamente há importante presença judaica na esquerda, como Karl Marx, Rosa Luxemburgo e a ala judaica conhecida como “Bund”, que está na origem do caldo político que formaria o Partido Comunista da URSS. Houve a reação antifascista no Levante do Gueto de Varsóvia, no fato de ser judeu o oficial Anatoly Shapiro, o qual comandava o pelotão soviético na libertação de Auschwitz.
O que ocorre é que uma minoria barulhenta de membros da comunidade judaica (alguns deles grandes empresários) se alienou da história de perseguições contra o seu povo (inclusive contra pais, avós e bisavós refugiados). Deitados sobre o sangue e o suor de seus antepassados, abraçaram o bolsonarismo como ponta de lança contra a esquerda, a qual enxergam equivocadamente como ameaça ao seu status dentro da lógica escravocrata que orienta a sociedade brasileira.”
Ilton Gitz
“Eu pergunto de outra forma: como o cristianismo pode apoiar uma figura como Bolsonaro? Dentro do que se chama de ‘judeu’ existem pessoas que tem uma afinidade com essa visão do Bolsonaro e outras que são contrárias. O judeu vai se comportar da mesma forma que qualquer outro grupo como os negros e as mulheres.”
Renato Levin Borges
“O caso da entrevista do (secretário Roberto) Alvin, exatamente igual a de Joseph Goebbels, ministro da propaganda nazista, sinaliza algo que é importante para a direita global. É aquilo que se chama de ‘dog whistle’ ou “apito de cachorro”. O que é o apito de cachorro? Ele só é escutado na frequência do cachorro. Quem é iniciado no supremacismo branco, no neonazismo e nos grupos de extrema direita percebe essa semiótica e logo reconhece, para além do discurso do Alvim, todo o imaginário do regime nazista. É um jogo muito simbólico que o bolsonarismo faz em relação ao nazifascismo.”
BdF RS - A seu ver, como a comunidade está lidando com este relacionamento com uma administração de perfil fascista?
Iair Grinschpun
“Há uma visão deturpada da comunidade judaica e de Israel. Quem não faz parte da comunidade tende a estereotipá-la e pensa que somos um bloco monolítico. A comunidade é acima de tudo plural, bem como Israel é um país muito heterogêneo. É impossível estabelecer uma linha de pensamento e conduta ‘dos judeus’. Há judeus alinhados com a direita, esquerda, extremos de ambos, centristas e ainda os que se mantém alheios a política.(...)
A comunidade judaica está lidando com essa realidade como um microcosmos do Brasil. Amplamente dividida, tendo apoiadores irrestritos e cegos do bolsonarismo (infelizmente), bem como outros (entre os quais me incluo) que consideram esse governo a maior tragédia política e social que já vivemos.”
A comunidade está agora bem mais disputada do que em 2018
Dael Luis Prestes Rodrigues
“A comunidade judaica é ínfima no Brasil. Mas é politicamente diversificada. O apoio ou oposição ao atual governo ocorrem, e com raríssimas exceções, todos respeitam todos em suas opções políticas.”
Marcelo Sikinowski Silveira
“A comunidade judaica está lidando da mesma forma conflituosa e contraditória que a sociedade brasileira.(...) Na realidade, o mais desafiador tem sido combater a máquina de fake news e introjetar em judeus bolsonarizados a ideia de que o Judaísmo é uma religião monoteísta fundamentada em duas ideias: a “Tzedaká”, que significa justiça social, e “Tikun Olam”, a ideia judaica de que Deus cria o mundo intencionalmente imperfeito para que o ser humano seja agente ativo no processo de aperfeiçoamento, não mero espectador.”
Ilton Gitz
“Não existe a ‘comunidade judaica’. Existem judeus que fazem parte de uma comunidade. Não existe uma liderança que vai dizer ‘Vota em fulano’.”
Renato Levin Borges
“A comunidade hoje está bem mais disputada do que em 2018. Agora há uma divisão com grupos bastante fortes que disputam esta hegemonia. Não há hegemonia embora haja um certo silêncio das federações regionais e uma adesão aberta da federação do Rio de Janeiro ao bolsonarismo.”